Anticomunismo no mundo: do massacre nos anos 60 à direita global hoje
O massacre em massa de esquerdistas na Indonésia, em 1965, como o golpe de 1964 no Brasil, foram atrocidade apoiada pelos EUA, que moldam o mundo de hoje
Publicado 24/05/2020 18:03 | Editado 24/05/2020 18:05
Os impactos econômicos e sociais da pandemia da Covid-19 abalam até o seu âmago a ordem global pós-Guerra Fria. As grandes desigualdades, no interior das nações e entre elas ficaram evidentes.
Uma das dificuldades da geração moldada pelo fim do comunismo realmente existente e do nacionalismo do 3º Mundo sempre foi acreditar que outro mundo fosse realmente possível. As gerações anteriores não tiveram esse problema; acreditavam que não apenas uma sociedade mais justa era possível, mas também próxima, ao seu alcance.
Não foram apenas as experiências econômicas fracassadas que puseram fim a esses sonhos. A derrota dos movimentos socialistas e reformistas, do Brasil à a Indonésia, foi resultado de uma campanha anticomunista global organizada, liderada pelos EUA e apoiada por outras potências ocidentais e pelas classes dominantes locais. E foi terrivelmente violenta.
O livro do jornalista Vincent Bevins, The Jakarta Method: Washington’s Anti-communist Crusade and the Mass Murder Program That Shaped Our World (O Método Jacarta: A Cruzada Anticomunista de Washington e o Programa de Assassinatos em Massa que Moldou Nosso Mundo) é uma história original dessa violência praticada pelos EUA e seus aliados durante a Guerra Fria.
Bevins argumenta que o mundo atual foi construído pela violência anticomunista. O Método Jacarta é mais do que apenas mais um relato de atrocidades da Guerra Fria – é um envolvimento empático com as esperanças e os sonhos de uma geração que viveu aqueles acontecimentos. O jornalista e historiador Benjamin Fogel conversou com Bevins sobre como o anticomunismo criou o planeta desigual em que vivemos hoje.
Jacobin: O que o inspirou a escrever este livro?
Vincent Bevins: Cheguei a Jacarta, na Indonésia, em 2017, para cobrir o Sudeste Asiático para o Washington Post. Primeiro, ficou muito claro para mim que os fantasmas do massacre de 1965 estavam logo abaixo da superfície, não importa para onde eu olhasse. Nunca se falou abertamente dele. E segundo, quando eu contava às pessoas de fora da região sobre isso, elas reagiam quase sempre chocadas e com interesse. Os assassinatos em massa na Indonésia foram talvez a maior “vitória” para o Ocidente em toda a Guerra Fria. Era, de fato, muito mais importante para Washington vencer na Indonésia do que no Vietnã. Os EUA ajudaram no assassinato de cerca de 1 milhão de pessoas inocentes. Terceiro, descobri que havia muitas conexões entre o que aconteceu em países como Brasil, Chile e Guatemala. Então senti que não tinha escolha.
Jacobin: Como, exatamente, o conflito na Indonésia foi mais importante que a Guerra do Vietnã?
VB: A Indonésia é o quarto maior país em população. Dentro da “teoria do dominó”, era de longe o maior dominó, tinha quase três vezes mais habitantes que o Vietnã. No início dos anos 60, todos no establishment da política externa dos EUA reconheciam que era mais importante do que o Vietnã como uma questão de política externa. Sukarno era um líder fundador do movimento do 3º Mundo (a Conferência de Bandung ocorreu na Indonésia, em 1955, para unir os países do 3º Mundo contra o imperialismo). A Guerra do Vietnã dominou a política interna dos EUA por muitos anos, mas, geopoliticamente, não conseguiu nada. A Indonésia de 1965-1966 mudou tudo.
Jacobin: O evento no centro do seu livro é uma campanha de extermínio em massa dirigida contra o Partido Comunista da Indonésia (PKI), na época o maior partido comunista fora da China e da URSS. Como o PKI foi tão bem-sucedido e visto como uma ameaça aos interesses dos Estados Unidos?
VB: O PKI era o partido comunista mais antigo da Ásia, fundado antes do Partido Comunista da China. Desde o início, colaborava com forças “nacional-burguesas”. Eram revolucionários em duas etapas, que deixavam a transição para o socialismo no futuro, após o pleno desenvolvimento do capitalismo. Foi muito moderado em comparação com o que os falantes de inglês pensam quando ouvem a palavra “comunista”. Em relação à China, o Comintern havia realmente instruído a Mao para colaborar com os nacionalistas, porque Moscou queria que os chineses replicassem o sucesso que os comunistas indonésios tiveram ao trabalhar com grupos muçulmanos. Não funcionou tão bem com Mao, mas o PKI ficou mais ou menos nesse caminho durante sua existência. Depois que Sukarno e as forças revolucionárias expulsaram os holandeses em 1949, o PKI se tornou parte da nova democracia multipartidária do país independente. O presidente Sukarno, herói da independência do país, não era comunista, era um anti-imperialista de esquerda, que governava em aliança com forças diferentes. Os comunistas indonésios não eram armados, nem sequer previam a possibilidade da luta armada. As próprias autoridades dos EUA notaram na época que o PKI era uma organização muito administrada – tinham programas culturais muito populares e organizações camponesas e uma enorme base feminista, e não sofriam da corrupção desenfreada como todo mundo. Mas seu sucesso eleitoral crescente não agradou a Washington, que tentou detê-los de duas formas – e ambas fracassaram. Primeiro, começaram a injetar dinheiro num partido muçulmano mais conservador. Então, em 1958, pilotos da CIA bombardearam a Indonésia, matando civis, na tentativa de destruir o país. Naquele ano, a inteligência britânica, o MI6, observou que o PKI ficaria em primeiro lugar nas eleições. Mas, apesar dos protestos dos comunistas, não houve mais eleições, e o PKI continuou apoiando Sukarno, pois, no outro extremo do espectro político, havia militares treinados pelos EUA aguardando nos bastidores.
Jacobin: Parte da história que você conta é sobre como uma geração sonhava com um mundo melhor. Você pode falar um pouco sobre o que inspirou essa geração e o significado desses sonhos hoje?
VB: Dediquei bastante tempo e esforço para tornar essa história real, com seres humanos reais e os altos e baixos em suas vidas reais, em vez de fazer apenas análise ou contagem de corpos. As pessoas que acabei conhecendo dirigiram o livro para mim e o mudaram totalmente. E uma coisa que foi realmente inesperada foi o mundo que eles abriram para mim, apenas lembrando como pensavam que seria o futuro. Nasci na década de 1980 e, para minha geração, tudo parece tão óbvio que o mundo seria assim, com um capitalismo amigável em todos os lugares, exceto em alguns países ricos, e pessoas brancas capazes de voar para qualquer país. Para países de pele escura, pobres, onde, essencialmente se compram e vendem pessoas, com o dinheiro que recebemos apenas por ter nascido no 1º Mundo. Para minha geração, parecia claro que o “comunismo” perderia e seria varrido da face da terra, e você teria que maximizar seu valor numa economia que sabe que é uma besteira. Que o país mais poderoso da Terra estaria sempre conduzindo guerras com vários países ao mesmo tempo que são inescrutáveis para a maioria das pessoas. Tudo isso parece ter que acontecer. E apenas falando com aquelas pessoas, passando meses ganhando sua confiança e entendendo como viram o mundo se desenrolar nas décadas de 1950 e 1960, ficou muito claro que isso não acontecia.
Jacobin: O que aconteceu na Indonésia em 1965 e o que levou a esses eventos? Você também poderia nos dar uma ideia de quais atores dos EUA estavam envolvidos e por quais razões?
VB: A versão curta é que os militares apoiados pelos EUA usaram uma rebelião como pretexto para lançar uma grotesca campanha de propaganda anticomunista, prender e assassinar cerca de 1 milhão de esquerdistas ou acusados de esquerdismo e pôr outro milhão em campos de concentração. Mas a versão longa é: primeiro, John F. Kennedy foi assassinado. Isso mudou totalmente a abordagem dos EUA em relação à Indonésia, e 1965 pode ser a consequência mais importante da morte de JFK. Seu sucessor, Lyndon Johnson, teve de responder às travessuras anti-imperialistas de Sukarno, em especial um confronto com a Grã-Bretanha pela criação da Malásia. Johnson mudou o embaixador dos EUA na Indonésia. A CIA e o MI6 intensificaram suas atividades clandestinas e de propaganda, e muito disso é secreto até hoje. Liguei para a CIA e perguntei o que eles fizeram e por que isso ainda está classificado. Adivinhem: eles não me responderam. O que sabemos é que, em segredo, as autoridades ocidentais disseram repetidamente que a melhor coisa que poderia acontecer seria um “golpe comunista abortado” que poderia ser usado como justificativa para esmagar o PKI. Muito misteriosamente, algo exatamente assim aconteceu. As várias teorias sobre o que realmente foi a revolta poderiam preencher um emocionante podcast de 50 partes, mas basta dizer que houve na Indonésia uma rebelião de oficiais do exército de baixo escalão alegando que um grupo de generais planejava um golpe de direita. Seis desses generais foram mortos. Logo após isso, o general reacionário Suharto assumiu o controle do país, fechou toda a mídia, exceto a dele, e os militares começaram a supervisionar assassinatos em massa. Foi dito aos cidadãos que matassem ou fossem mortos. Os EUA deram apoio material crítico, incentivaram os militares a matar mais pessoas e deram listas com nomes de pessoas a serem mortas. Os esquerdistas regulares não tinham ideia de que isso estava por vir. Muitos que conheci não tinham nenhuma ideia prévia de que ser “comunista” fosse uma coisa ruim. O massacre sem impedimentos terminou no início de 1966, e as empresas dos EUA se estabeleceram no país logo depois.
Jacobin: O outro grande evento do seu livro é o golpe militar no Brasil em 1964, que levou a 21 anos de regime militar. Qual foi o significado do golpe e como ele se relaciona com os eventos de 1965 na Indonésia?
VB: O golpe brasileiro aconteceu antes, é claro. E, para mim, a história de propaganda divulgada por Suharto em 1965 parece estranhamente familiar à lenda anticomunista que motivou as forças armadas brasileiras em 1964. Mas, de maneira mais ampla, o que se tem aqui são dois países que passam pelo mesmo processo ao mesmo tempo e produzem o mesmo tipo de sociedade. Ambos os países têm golpes militares apoiados pelos EUA, que criam estruturas sociais capitalistas autoritárias e anticomunistas, que na maioria das vezes continuam em vigor até hoje. As forças armadas dos dois países foram treinadas na mesma base nos EUA e tiveram muitas oportunidades de aprender umas com as outras, e certamente estudavam com os mesmos professores estadunidenses. Um personagem importante do livro, um homem incrível que tive a sorte de conhecer, me contou sobre a maneira como esses homens viviam no Kansas (EUA) nos anos 50. Os golpes foram importantes vitórias para a direita global – afinal, são países enormes – e os regimes resultantes embarcaram em uma espécie de “mini-imperialismo” anticomunista em suas respectivas regiões. Então, no início dos anos 70, o Brasil está na fase mais brutal de sua ditadura e ajudou as forças armadas chilenas a preparar o terreno para seu próprio golpe, de 1973. Atores de direita nos dois países buscaram inspiração na Indonésia, e o nascimento do meme terror de “Jacarta” que, no livro, localizo no mundo inteiro.
Jacobin: Meme do terror?
VB: Certo, o uso amplo de “Jacarta” em todo o mundo para significar o assassinato em massa de esquerdistas. Pintado nas paredes, enviado em cartões postais, usado para nomear operações terroristas secretas, etc.
Jacobin: Como essas intervenções diferiram das intervenções anteriores da Guerra Fria, como as realizadas no Irã em 1953 e na Guatemala em 1954?
VB: Faço uma espécie de distinção entre a primeira fase das intervenções da Guerra Fria no 3º Mundo – Irã em 1953 e Guatemala em 1954 são os melhores exemplos. Essas intervenções foram mais silenciosas e, em última análise, mais bem-sucedidas da década de 1960. No Irã, a CIA contratava homens fortes e artistas de circo para realizar protestos falsos. Na Guatemala, havia aviões lançando bombas sobre a capital e o governo negociando sua rendição diretamente com o embaixador dos EUA. Era óbvio que Washington estava orquestrando essas coisas, mesmo que a imprensa dos EUA não tenha dito isso. Com a Indonésia e o Brasil, foi diferente. Na Indonésia, em 1958, a CIA tentou reproduzir o sucesso do manual de 1954 da Guatemala. Não deu certo. Fizeram pilotos estadunidenses lançar bombas em ilhas tropicais e matando civis, e foram pegos. Mudaram, então, para uma estratégia diferente, de se alinhar profundamente com um exército fortalecido – algo semelhante ao que vinha acontecendo entre o Brasil e os EUA desde a 2ª Guerra Mundial. Então, nos golpes em 1964 e 1965, no Brasil e na Indonésia, havia atores locais liderando em grande parte, mesmo que as autoridades dos EUA estivessem envolvidas nos bastidores, constantemente informadas e dando sua aprovação e conselho, deixando claro para os brasileiros e indonésios o que eles deviam e não deviam fazer. Para o cidadão médio na Indonésia e no Brasil, parecia que era um segmento de sua própria elite que havia tomado o poder. Até certo ponto, isso era verdade. E acho que não é coincidência que os regimes estabelecidos no Brasil e na Indonésia tenham tido muito mais sucesso em deixar um legado estável e duradouro do que os governos criados no Irã em 1953 e na Guatemala em 1954.
Jacobin: Então, qual é exatamente o método Jacarta?
VB: O método Jacarta é reunir e matar um grande número de esquerdistas desarmados, a serviço da criação de um tipo específico de ordem social. Ao eliminar essas pessoas, essa oposição potencial, é aberto o caminho para o capitalismo autoritário e para a criação de um ator geopolítico que se encaixa num sistema crescente liderado pelos EUA. A Indonésia 1965 foi a época o mais mortal e consequente em que esse “método” foi usado, embora não tenha sido o primeiro. Devido à sua fama e importância, os países da América Latina começaram a usar o método “Jacarta” para significar esse tipo de programa de extermínio. A razão pela qual fizeram isso, e a razão pela qual este é um momento tão chocante na história do século 20, é porque o método Jacarta funcionou. E funcionou tão bem porque foi a postura do poder proeminente do mundo, os EUA. A direita global viu o que aconteceu na Indonésia e viu que Suharto foi rapidamente aceito na constelação de respeitados aliados dos EUA. A esquerda global também viu e reagiu de maneira que teriam consequências duradouras para os movimentos socialistas. Mas “Jacarta” foi implantado efetivamente nas Américas do Sul e Central, bem como em partes da Ásia (embora não usassem esse nome). Esses regimes acabaram construindo o mundo em que estamos hoje. A lista é grande: Chile, Brasil, Guatemala e Argentina, para citar alguns. São os principais componentes de um novo sistema globalizado, sobretudo no “mundo em desenvolvimento” – ou seja, na grande maioria do planeta. Em grande parte, vivemos num mundo criado por massacres anticomunistas.
Jacobin: Acho que o mais notável nesses eventos é que, com algumas exceções, os casos que ancoram seu livro – Brasil e Indonésia, ao lado do exemplo mais recente do Chile em 1973 – eram projetos reformistas e comunistas que buscavam promover mudanças democraticamente, sem meios revolucionários. Você acha que há lições aqui para a esquerda de hoje?
VB: De modo geral, e especialmente no caso do Partido Comunista da Indonésia, foram os movimentos gradualistas e não violentos que foram mortos. A explicação simples é que não teria sido tão fácil matá-los se fossem armados. Mesmo nos países onde houve violentos movimentos de guerrilha (como na América Central), a maior parte dos mortos geralmente não era de combatentes endurecidos nos combates, mas os camponeses pegos de surpresa quando os esquadrões da morte militares chegavam. Passei algum tempo numa vila guatemalteca onde isso ocorreu, e é impossível comunicar as profundezas da depravação aqui sem mencionar a injustiça ardente da vida que restou após o fim da violência. Sinto-me culpado por dizer isso, mas esse foi um livro emocionalmente difícil de escrever – o que realmente me atrapalhou, me deixou totalmente desequilibrado e me fez questionar muitas coisas. Embora me certificasse de não tornar o livro real violento ou horrível, estava nadando muito fundo em algumas coisas escuras, e era difícil. Talvez por esse motivo, eu não seja a melhor pessoa para extrair as lições. Definitivamente, há lições a tirar – só acho que não são 100% claras. Exigem uma consideração cuidadosa. Os apoiadores entusiasmados da campanha de Bernie Sanders, por exemplo, podem encontrar alguma ressonância com o momento atual. Mais diretamente, os leitores que vivem no “mundo em desenvolvimento” podem achar que isso lança alguma luz sobre a situação contemporânea. E a história certamente diz muito sobre a natureza da hegemonia dos EUA. O que realmente gostaria é que outras pessoas estudem o livro inteiro e digam quais são as lições.
Jacobin: Você argumenta no livro que a violência anticomunista destruiu o potencial de experimentos alternativos em desenvolvimento para o chamado 3º Mundo, levando à atual era de desigualdade global. Você pode expandir o que isso significava, por exemplo, em Bandung ou na Nova Ordem Econômica Internacional, no sentido de que, mais do que erros econômicos, foi o sangue que pôs fim a essas experiências?
VB: Uma das coisas mais emocionantes, talvez mais do que a violência, foi sentar-me com esses idosos e conversar longamente sobre como entendiam o mundo no início dos anos 1960. O 3º Mundo – usado no sentido original totalmente otimista e triunfante – havia acabado de alcançar a independência do imperialismo. Os povos das nações colonizadas estavam se reunindo para ocupar seu lugar no cenário mundial. É claro que mudariam as regras da ordem global. É claro que alcançariam o Ocidente. É claro que avançariam em direção ao socialismo. Não foram apenas os militantes de esquerda que acreditavam nisso – na Indonésia, essa era basicamente a ideologia nacional e, em toda a Ásia, África e América Latina, parecia óbvio. Você se livra do colonialismo e agora é igual aos países brancos. Podia ver seus olhos se iluminando quando lembravam esse sonho. Isso não aconteceu, é claro. Tento demonstrar neste livro que uma parte significativa da razão disso, um elemento constituinte da “globalização”, era um novo tipo de violência. E se você olhar para as pessoas que foram mortas simplesmente por suas crenças naquele futuro progressista – a feminista Gerakan Wanita na Indonésia, por exemplo –, você descobre que representavam coisas que quase todo bom liberal no mundo de língua inglesa agora defende.
Jacobin: Um de seus argumentos é que o anticomunismo é uma ideologia fundadora, ou mesmo religião, em países como Indonésia e Brasil. O que isso significa e como continua a moldar a política contemporânea? Acha que isso também é verdade nos EUA?
VB: Bem, é incontroverso que o anticomunismo tenha sido a ideologia fundamental para os regimes criados em 1964 e 1965. Mas o que acho realmente interessante é que ninguém presta muita atenção ao que isso realmente significa. Vivemos em um mundo onde é tão óbvio que os anticomunistas venceram que não vemos como isso afetou nossa trajetória. E o que isso significou para as ditaduras anticomunistas do século 20 – que qualquer tipo de crítica à ordem social, qualquer pressão de baixo para cima, qualquer troca entre capital e trabalho, o tipo de coisa que todo mundo reconhece como essencial para o capitalismo funcionar – pode ser descartado como “comunismo” e deixado de lado. É o que gera a forma profundamente corrupta de capitalismo que se vê agora basicamente em toda parte. No Brasil e na Indonésia, o legado anticomunista é especialmente óbvio. Na Indonésia, ainda é ilegal, até hoje, defender o “comunismo”. Há histórias absurdas: prisão de turistas com camiseta de um país comunista, ou, muito mais seriamente, meus amigos e colega de quarto sendo ameaçados e aterrorizados a qualquer momento quando se reúnem para conversar sobre a história de seus países. No Brasil, quando comecei a trabalhar no livro, em 2017, disse que o fantasma do violento anticomunismo nunca havia sido exorcizado e poderia voltar a aterrorizar o País. Agora, com Jair Bolsonaro presidente, não tenho prazer em me ver muito mais certo do que jamais esperava. Coincidentemente, seu filho, deputado Eduardo Bolsonaro, quer tornar ilegal o “comunismo” no Brasil e citou a lei Indonésia como exemplo.
Jacobin: Esses eventos foram chamados, de acordo com os vencedores no Brasil, como uma revolução em defesa da democracia contra o comunismo. Nos dois casos, em graus variados, prevalece um tipo de amnésia em massa. Como acha que esse revisionismo molda a política contemporânea?
VB: É importante enfatizar duas coisas. Por um lado, não havia ameaça comunista no Brasil, embora houvesse uma ameaça real à ordem social que as elites, os militares e os EUA queriam manter. Essa ordem era muito frágil e precisava empregar a violência de cima para mantê-la. O presidente João Goulart foi, no máximo, um reformador liberal. O Partido Comunista era pequeno e Moscou não se interessa em provocar Washington fomentando a revolução na América do Sul. Mas, se Goulart pudesse concorrer novamente, provavelmente seria reeleito. Se tivesse implantado algumas de suas reformas básicas – permitindo que todos votassem, reforma agrária básica, alfabetização em massa –, isso teria mudado o País, inclusive para as elites. O Brasil é uma colônia violenta de colonos, amplamente definida pelo terror que a elite tem das rebeliões de escravos ou da revolução de baixo – e mais de uma vez a classe dominante viu a ameaça vermelha e atacou primeiro. O golpe de 64 interrompeu a evolução social e congelou a ordem social de meados do século, em grande parte até hoje. Claro, todo mundo no Brasil luta por definir e redefinir a história, e Bolsonaro foi notavelmente vitorioso nos últimos dois a três anos. Hoje, vemos muito uma versão mais virulentamente anticomunista e distorcida do que a apresentada pelos generais em 1968.
Jacobin: Em sua opinião, qual é o legado do anticomunismo na política dos EUA?
VB: Há duas coisas. Por um lado, não construímos estruturas socialdemocratas como a Europa Ocidental construiu no pós-guerra, e um pouco disso – nem tudo – pode ser atribuído a esse impulso anticomunista. Não tenho certeza se foi isso que nos impediu de expandir nosso Estado de bem-estar social nos últimos anos – esse tipo de expansão não aconteceu basicamente em nenhum lugar do mundo desenvolvido desde a queda do Muro de Berlim e a era histórica neoliberal do mundo. Mas acho que não é coincidência que o único país rico sem medicina socializada também tenha sido a “fortaleza global do anticomunismo”, como afirmou o historiador brasileiro Rodrigo Patto Sá Motta. E segundo, essa memória ainda está obviamente lá. O Russiagate foi provavelmente um bom exemplo disso. Não segui as coisas de perto, mas acho que os historiadores provavelmente vão olhar e concluir: “Bem, parece que os liberais tiveram um tipo de surto, negaram que seus compatriotas elegessem Donald Trump e deslizaram em uma antiga Guerra Fria porque era mais fácil do que olhar para si mesmos”, deixando de lado, é claro, todas as maneiras pelas quais Vladimir Putin era realmente um ator ruim em 2016. Não foi exatamente isso que você pediu, mas acho que o verdadeiro legado de nossa “cruzada anticomunista”, como disse, não é tão doméstico quanto definiu nossa posição geopolítica, nossa relação com o resto do mundo. Odd Arne Westad está certo ao dizer que grande parte do sistema global foi gerada nos conflitos da “Guerra Fria”, e este é provavelmente o sistema global mais extenso e robusto da história planetária.