Ainda se estuda Marx?

Mas professor, ainda se estuda Marx? Resposta: até dias atrás seus livros serviam para sustentar estantes, hoje estão voltando para as prateleiras. O diálogo mencionado acima ocorreu em 2009 durante uma aula de história antiga quando havia recém ingressado no Curso de História da UFRGS.

Por Mateus Fiorentini

Marx

Na ocasião, o professor apresentara 3 interpretações distintas do campo do marxismo sobre o conceito de classe para introduzir o tema do curso. Essa é uma das lembranças mais claras que tenho desse período importante, na saga percorrida até a graduação, e revela um debate que marcou as ciências humanas por bom período. Durante os anos 90, quando ganhavam força perspectivas que enxergavam o fim da história, muitos declararam a morte do marxismo. Contudo, com a explosão da crise mundial do capitalismo (2007), a atualidade da obra de Marx para explicar as dinâmicas do capitalismo tem ocupado papel de destaque. Dessa forma, após 200 anos de seu nascimento, o pensamento e a obra de Marx seguem vivos.

Marx viveu em um contexto onde o capitalismo consolidava-se, enquanto Modo de Produção hegemônico. Naquele contexto formavam-se novos processos e personagens, destacando-se os trabalhadores assalariados e o operariado, a partir do impulso da indústria. Assim, o século XIX esteve marcado por intensos conflitos e embates de caráter histórico e impactaram sobre a forma como o alemão interpretava uma realidade com dinâmicas cada vez mais complexas. Diferente do que afirmam algumas pessoas que frequentaram recentemente a Avenida Paulista, vestidas com a camiseta da seleção brasileira, Marx não inventou a luta de classes, a dialética ou o materialismo. Seu objetivo consistia em compreender aquela realidade em toda sua complexidade. Por isso, o “método dialético surge como recurso para analisar a realidade contraditória” (GRESPAN, 2002.). Marx parte da necessidade de compreender e/ou desvendar o processo real dos fenômenos sociais identificando neles totalidades contraditórias que carregam ao mesmo tempo, os mesmos elementos que afirmam sua positividade ou negatividade. Assim, enquanto o capitalismo se afirma e consolida os elementos que o distinguem de qualquer outro Modo de Produção já havido na história da humanidade, o faz negando as características que o vinculam aos modelos implementados no passado. Quer dizer, a medida em que o capitalismo reafirma as características que o definem, o faz negando-se simultaneamente, em unidade dialética.

O uso da dialética marxista permite ir além, uma vez que descortina a relação entre aparência e essência. Assim, da mesma forma que a burguesia reafirma o estatuto da igualdade jurídica, que diferencia o capitalismo do Absolutismo ou da sociedade Medieval, desenvolve um sistema sofisticado de exploração do trabalho. A crença de que todos são plenamente livres, graças a igualdade diante da lei reforça a dominação sobre o trabalho. Dito de outra forma poderia ser assim:

Como a circulação é parte do processo global, a igualdade é momento da desigualdade mais profunda, que necessita daquela aparência: o trabalhador tem que ser ‘livre’ para que o capital possa contratá-lo ou demiti-lo conforme os interesses de sua valorização. (GRESPAN, 2002)

Essa dualidade representa uma marca que singulariza o capitalismo em relação aos demais Modos de Produção. Identificar as dinâmicas que determinam a produção e a reprodução das condições materiais de sobrevivência dos seres humanos (o que não tem haver com o economicismo do qual lhe fora atribuido) foi o que levou Marx a recorrer ao método dialético para sua análise, não o contrário. Ou seja, não é o pensamento de Marx que cria as classes ou a luta entre elas. Antes, porém, é a existência objetiva das mesmas e seus conflitos que coloca para o alemão a necessidade de utilizar e desenvolver o método materialista e dialético. Por isso, o pensamento de Marx e sua leitura do capital, assim como das dinâmicas e características do capitalismo produziram enorme impacto sobre a sociedade assim como nas ciências humanas. Ele demarcou uma forma revolucionária de apreender e explicar a realidade objetiva e desnudou o capitalismo. É nesse sentido que a obra produzida por Marx assume grande transcendência e revela constantemente a atualidade do seu pensamento.

As edições de O Capital e o pensamento vivo de Marx

Apenas o primeiro volume de O Capital fora publicado por Marx, ainda em vida. Os outros dois tomos, que completam a versão mais famosa da trilogia, foram editados após a sua morte, por Engels. Diante disso, as edições promovidas pelo companheiro de Marx tem sido alvo de inúmeros debates. Alguns chegam a afirmar, sobre o terceiro livro, que “não podem ser consideradas o volume 3 de O Capital” (HENRICH, 2016). A expressão esta inserida no contexto das polêmicas sobre o papel de Engels na produção de Marx. Esse debate será neglicenciado aqui, destacando apenas que tais visões buscam diminuir o papel de Engels enquanto pensador e suas contribuições ao desenvolvimento da obra de Marx ou do marxismo. Quando Marx morreu, o que o mesmo encontrou eram notas soltas, raciocínios abertos ou conceitos ainda sem maior formatação. Agrega-se a isso a péssima caligrafia de Marx cuja letra era compreensível apenas para ele mesmo e a esposa Jenny. Por isso, diante de uma tarefa difícilima de organizar e editar o emaranhado de anotações deixadas, não é apenas injusto, mas um erro, menosprezar o trabalho desenvolvido por Engels.

Porém, os historiadores envolvidos no trabalho impulsionado pela editora alemã MEGA (MEGA-2: Marx-Engels-Gesamtausgabe) com os manuscritos de Marx afirmam que Engels fez mais que editar e organizar a obra deixada pelo companheiro. A MEGA edita todos os escritos de Marx e Engels. Seu acervo esta dividido em quatro partes que contemplam todas as obras, exceto estudos relacionados ao capital (1), estudos preparatórios e O Capital (2), cartas (3) e outros registros (4). Ao longo da manipulação dos manuscritos de Marx os editores da MEGA identificaram que Engels não incidiu apenas nos aspectos estéticos ou na clareza de seus conceitos. Estas interferências iriam desde a disposição de determinados temas à elaboração de definições distintas e até opostas as de Marx. Para os mesmos, Engels buscou reproduzir, mas ao fazê-lo interferiu de certa maneira nas definições e conceitos que Marx vinha desenvolvendo. Nesse sentido, o estudo dos manuscritos permite identificar outras versões, opiniões ou debates e polêmicas existentes que marcavam o período. Por outro lado, mostram o pensamento marxiano como algo aberto e em constante desenvolvimento.

Entretanto, nunca será possível descobrir se as conclusões de Marx seriam as mesmas que aquelas inscritas no amontoado de rascunhos e anotações encontrado por Engels. O estudo dos manuscritos permite identificar pontos de vistas que amadureceram ou não, feixes de possibilidades considerados num momento dado. Revelam, ainda, o processo de produção intelectual de uma das mentes mais brilhantes da história da humanidade. Mas, sobretudo, possibilita aprofundar o conhecimento sobre a produção de Marx, algo central diante do atual momento histórico. Importantes transformações ocorrem na dinâmica do capitalismo onde aprofunda-se a liberalização das economias, o sequestro dos estados nacionais pelo rentismo, o neocolonialismo e a intensificação da exploração do trabalho. Tudo isso aliado ao crescimento de forças ultra conservadoras e facistas. No cenário nacional esse fenômeno materializa-se no processo do golpe em curso e o projeto que visa aplicar no país. Tais mudanças intensificam o processo de atomização e precarização do trabalho através do corte de proteções laborais, atacam a organização dos trabalhadores, agravam a exploração da mão de obra e acentuam a divsão do povo. Vão conformando-se, então, como alternativas conservadoras e reacionárias à crise atual que produz impacto nas características assumidas pela classe nesse contexto. Como disse nosso camarada, Batista Lemos, "a classe mudou" (LEMOS, 2018). Assim, Marx nunca foi tão atual para que compreendamos as peculiaridades assumidas pela classe trabalhadora e das lutas de classes no atual momento histórico.

Referências Bibliográficas

GRESPAN, J. “A dialética do avesso”, in Crítica Marxista. São Paulo: Boitempo, 2002, nº 14, pp. 26-47
HEINRICH, M. “A edição de Engels de O capital e o manuscrito original de Marx”, in Crítica Marxista. São Paulo: EDUNESP, 2016, nº 43. 29-43.
METALÚGICO e Presidente do PCdoB/RJ, João Batista Lemos fala sobre Lula. São Paulo: Tv Vermelho, 2018. (432 min.), son., color. Disponível em: