As premissas materialistas de Marx

A Ideologia Alemã (1845), que nunca foi publicada durante a vida de Marx e Engels – mas na qual, segundo Engels, eles acertaram as contas com sua consciência filosófica anterior – contém a primeira manifestação mais consistente da nova filosofia, materialista dialética, que nascia. De autoria de Karl Marx e Friedrich Engels, apresenta as bases materialistas do pensamento que desenvolveriam nas quatro décadas seguintes, e que revolucionária o mundo

Marx

Karl Marx e Friedrich Engels, A Ideologia Alemã.

Trechos da Introdução

As premissas de que partimos não constituem bases arbitrárias, nem dogmas; são antes bases reais de que só é possível abstrair no âmbito da imaginação. As nossas premissas são os indivíduos reais, a sua ação e as suas condições materiais de existência, quer se trate daquelas que encontrou já elaboradas quando do seu aparecimento quer das que ele próprio criou. Estas bases são portanto verificáveis por vias puramente empíricas.

A primeira condição de toda a história humana é evidentemente a existência de seres humanos vivos. O primeiro estado real que encontramos é então constituído pela complexidade corporal desses indivíduos e as relações a que ela obriga com o resto da natureza. Não poderemos fazer aqui um estudo aprofundado da constituição física do homem ou das condições naturais, geológicas, orográficas, hidrográficas, climáticas e outras, que se lhe depararam já elaboradas. Toda a historiografia deve necessariamente partir dessas bases naturais e da sua modificação provocada pelos homens no decurso da história. Pode-se referir a consciência, a religião e tudo o que se quiser como distinção entre os homens e os animais; porém, esta distinção só começa a existir quando os homens iniciam a produção dos seus meios de vida, passo em frente que é conseqüência da sua organização corporal. Ao produzirem os seus meios de existência, os homens produzem indiretamente a sua própria vida material. A forma como os homens produzem esses meios depende em primeiro lugar da natureza, isto e, dos meios de existência já elaborados e que lhes é necessário reproduzir; mas não deveremos considerar esse modo de produção deste único ponto de vista, isto é, enquanto mera reprodução da existência física dos indivíduos. Pelo contrário, já constitui um modo determinado de atividade de tais indivíduos, uma forma determinada de manifestar a sua vida, um modo de vida determinado. A forma como os indivíduos manifestam a sua vida reflete muito exatamente aquilo que são, o que são coincide portanto com a sua produção, isto é, tanto com aquilo que produzem como com a forma cotizo produzem. Aquilo que os indivíduos são depende portanto das condições materiais da sua produção. Esta produção só aparece com o aumento da população e pressupõe a existência de relações entre os indivíduos. A forma dessas relações é por sua vez condicionada pela produção.
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Como vemos, são sempre indivíduos determinados, com uma atividade produtiva que se desenrola de um determinado modo, que entram em relações sociais e políticas determinadas. É necessário que, em cada caso particular, a observação empírica mostre nos fatos, e sem qualquer especulação ou mistificação, o elo existente entre a estrutura social e política e a produção. A estrutura social e o Estado resultam constantemente do processo vital de indivíduos determinados; mas não resultam daquilo que estes indivíduos aparentam perante si mesmos ou perante outros e sim daquilo que são na realidade, isto é, tal como trabalham e produzem materialmente.
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A produção de idéias, de representações e da consciência está em primeiro lugar direta e intimamente ligada à atividade material e ao comércio material dos homens; é a linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o comércio intelectual dos homens surge aqui como emanação direta do seu comportamento material. O mesmo acontece com a produção intelectual quando esta se apresenta na linguagem das leis, política, moral, religião, metafísica, etc., de um povo. São os homens que produzem as suas representações, as suas idéias, etc., mas os homens reais, atuantes e tais como foram condicionados por um determinado desenvolvimento das suas forças produtivas e do modo de relações que lhe corresponde, incluindo até as formas mais amplas que estas possam tomar. A consciência nunca pode ser mais do que o Ser consciente e o Ser dos homens é o seu processo da vida real.
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Contrariamente à filosofia alemã, que desce do céu para a terra, aqui parte-se da terra para atingir o céu. Isto significa que não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam e pensam nem daquilo que são nas palavras, no pensamento na imaginação e na representação de outrem para chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens, da sua atividade real. É a partir do seu processo de vida real que se representa o desenvolvimento dos reflexos e das repercussões ideológicas deste processo vital. Mesmo as fantasmagorias correspondem, no cérebro humano, a sublimações necessariamente resultantes do processo da sua vida material que pode ser observado empiricamente e que repousa em bases materiais. Assim, a moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia, tal como as formas de consciência que lhes correspondem, perdem imediatamente toda a aparência de autonomia. Não têm história, não têm desenvolvimento; serão antes os homens que, desenvolvendo a sua produção material e as suas relações materiais, transformam, com esta realidade que lhes é própria, o seu pensamento e os produtos desse pensamento. Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência.
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Relativamente aos Alemães, que se julgam desprovidos de qualquer pressuposto, devemos lembrar a existência de um primeiro pressuposto de toda a existência humana e, portanto, de toda a história, a saber, que os homens devem estar em condições de poder viver a fim de afazer história. Mas, para viver, é necessário antes de mais beber, comer, ter um teto onde se abrigar, vestir-se, etc., O primeiro fato histórico é pois a produção dos meios que permitem satisfazer as necessidades, a produção da própria vida material; trata-se de um fato histórico, de uma condição fundamental de toda a história, que é necessário, tanto hoje como há milhares de anos, executar dia a dia, hora a hora, a fim de manter os homens vivos.

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O segundo ponto a considerar é que uma vez satisfeita a primeira necessidade, a ação de a satisfazer e o instrumento utilizado para tal conduzem a novas necessidades e essa produção de novas necessidades constitui o primeiro fato histórico.
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A produção da vida, tanto a própria através do trabalho como a alheia através da procriação, surge-nos agora como uma. relação dupla: por um lado como uma relação natural e, por outro, como uma relação social – social no sentido de ação conjugada de vários indivíduos, não importa em que condições, de que maneira e com que objetivo. Segue-se que um determinado modo de produção ou estádio de desenvolvimento industrial se encontram permanentemente ligados a um modo de cooperação ou a um estado social determinados, e que esse modo de cooperação é ele mesmo uma "força produtiva"; segue-se igualmente que o conjunto das forças produtivas acessíveis aos homens determina o estado social e que se deve estudar e elaborar a "história dos homens" em estreita correlação com a história da indústria e das trocas.
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Logo, manifesta-se imediatamente um sistema de laços materiais entre os homens que é condicionado pelas necessidades e o modo de produção e que é tão velho como os próprios homens – sistema de laços que adquire constantemente novas formas e tem assim uma "história" mesmo sem que exista ainda qualquer absurdo político ou religioso que contribua também para unir os homens. E só agora, depois de já examinados quatro momentos, quatro aspectos das relações históricas originárias, nos apercebemos de que o homem também possui "consciência". Mas não se trata de uma consciência que seja de antemão consciência "pura". Desde sempre pesa sobre o "espírito" a maldição de estar "imbuído" de uma matéria que aqui se manifesta sob a forma de camadas de ar em movimento, de sons, numa palavra, sob a forma da linguagem. A linguagem é tão velha como a consciência: é a consciência real. prática, que existe também para outros homens e que portanto existe igualmente só para mim e, tal como a consciência. só surge com a necessidade, as exigências dos contatos com os outros homens. Onde existe uma relação, ela existe para mim. O animal "não se encontra em relação" com coisa alguma. não conhece de fato qualquer relação; para o animal, as relações com os outros não existem enquanto relações. A consciência é pois um produto social e continuará a sê-lo enquanto houver homens. A consciência é. antes de tudo, a consciência do meio sensível imediato e de uma relação limitada com outras pessoas e outras coisas situadas fora do indivíduo que toma consciência; é simultaneamente a consciência da natureza que inicialmente se depara ao homem como uma força francamente estranha, todo-poderosa e inatacável, perante a qual os homens se comportam de uma forma puramente animal e que os atemoriza tanto como aos animais; por conseguinte, uma consciência de natureza puramente animal (religião natural). Por outro lado, a consciência da necessidade de entabular relações com os indivíduos que o cercam marca para o homem a tomada de consciência de que vive efetivamente em sociedade.
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Na sociedade comunista, porém, onde cada indivíduo pode aperfeiçoar-se no campo que lhe aprouver, não tendo por isso uma esfera de atividade exclusiva, é a sociedade que regula a produção geral e me possibilita fazer hoje uma coisa, amanhã outra, caçar da manhã, pescar à tarde, pastorear à noite, fazer crítica depois da refeição, e tudo isto a meu bel-prazer, sem por isso me tornar exclusivamente caçador, pescador ou crítico.
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O poder social, quer dizer, a força produtiva multiplicada que é devida à cooperação dos diversos indivíduos, a qual é condicionada pela divisão do trabalho, não se lhes apresenta como o seu próprio poder conjugado, pois essa colaboração não é voluntária e sim natural, antes lhes surgindo como um poder estranho, situado fora deles e do qual não conhecem nem a origem nem o fim que se propõe, que não podem dominar e que de tal forma atravessa uma série particular de fases e estádios de desenvolvimento tão independente da vontade e da marcha da humanidade que é na verdade ela quem dirige essa vontade e essa marcha da humanidade. Esta "alienação" – para que a nossa posição seja compreensível para os filósofos – só pode ser abolida mediante duas condições práticas. Para que ela se transforme num poder "insuportável", quer dizer, num poder contra o qual se faça uma revolução, é necessário que tenha dado origem a uma massa de homens totalmente "privada de propriedade", que se encontre simultaneamente em contradição com um mundo de riqueza e de cultura com existência real; ambas as coisas pressupõem um grande aumento da força produtiva, isto é, um estádio elevado de desenvolvimento. Por outro lado, este desenvolvimento das forças produtivas (que implica já que a existência empírica atual dos homens decorra no âmbito da história mundial e não no da vida loca) é uma condição prática prévia absolutamente indispensável, pois, sem ele, apenas se generalizará a penúria e, com a pobreza, recomeçará paralelamente a luta pelo indispensável e cair-se-á fatalmente na imundície anterior. Ele constitui igualmente uma condição prática sine qua non, pois é unicamente através desse desenvolvimento universal das forças produtivas que é possível estabelecer um intercâmbio universal entre os homens e porque, deste modo, o fenômeno da massa "privada de propriedade" pode existir simultaneamente em todos os países (concorrência universal), tornando cada um deles dependente das perturbações dos restantes e fazendo com que finalmente os homens empiricamente universais vivam de fato a história mundial em vez de serem indivíduos vivendo numa esfera exclusivamente local.
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Para nós, o comunismo não é um estado que deva ser implantado, nem um ideal a que a realidade deva obedecer. Chamamos comunismo ao movimento real que acaba com o atual estado de coisas. As condições deste movimento resultam das premissas atualmente existentes. Aliás, a massa de trabalhadores constituída pelos simples operários – força de trabalho maciça, separada do capital ou de qualquer espécie de satisfação mesmo limitada – pressupõe o mercado mundial, sendo a existência deste assegurada pela possibilidade de perda não temporária desse trabalho como fonte segura de subsistência, perda motivada pela concorrência. O proletariado só pode portanto existir à escala da história universal, assim como o comunismo, que é o resultado da sua ação, só pode concretizar-se enquanto existência "histórico-universal". Existência histórico-universal dos indivíduos, isto é, existência dos indivíduos diretamente ligada à história universal.
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A história não é mais do que a sucessão das diferentes gerações, cada uma delas explorando os materiais, os capitais e as forças produtivas que lhes foram transmitidas pelas gerações precedentes; por este motivo, cada geração continua, por um lado, o modo de atividade que lhe foi transmitido mas em circunstâncias radicalmente transformadas e, por outro, modifica as antigas circunstâncias dedicando-se a uma atividade radicalmente diferente.
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A partir daqui, é evidente que a verdadeira riqueza intelectual do indivíduo depende apenas da riqueza das suas relações reais. Só desta forma se poderá libertar cada indivíduo dos seus diversos limites nacionais e locais, depois de entabular relações práticas com a produção do mundo inteiro (incluindo a produção intelectual) e de se encontrar em estado de poder beneficiar da produção do mundo inteiro em todos os domínios (criação dos homens).
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Aqui poderemos ver que os indivíduos se criam uns aos outros, tanto física como espiritualmente. Mas que não se criam a si mesmos nem na disparatada concepção do São Bruno (referência a Bruno Bauer – NR) nem no sentido do "Único", do homem "feito a si mesmo" (referência a Max Stirner – NR).

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Esta soma de forças de produção, de capitais, de formas de relações sociais, que cada indivíduo ou cada geração encontram como dados já existentes é a base concreta daquilo que os filósofos consideram como "substância" e "essência do homem", daquilo que aprovaram e daquilo que combateram, base concreta cujos efeitos e cuja influência sobre o desenvolvimento dos homens não são de forma alguma afetados pelo fato de os filósofos se revoltarem contra ela na qualidade de "Consciência de si" e de "Únicos". São igualmente essas condições de vida, que cada geração encontra já elaboradas, que determinam se o abalo revolucionário que se reproduz periodicamente na história será suficientemente forte para derrubar as bases de tudo quanto existe; os elementos materiais de uma subversão total são, por um lado, as forças produtivas existentes e, por outro, a constituição de uma massa revolucionária que faça a revolução não apenas contra as condições particulares da sociedade passada mas ainda contra a própria "produção da vida" anterior, contra o "conjunto da atividade" que é o seu fundamento; se estas condições não existem, é perfeitamente indiferente, para o desenvolvimento prático, que a idéia desta revolução já tenha sido expressa mil vezes, como o prova a história do comunismo.

Notas
(1) Licinius, tribuno do povo que editou em 367 d.C., juntamente com Sextius, leis que favoreciam os plebeus, e segundo as quais nenhum cidadão romano tinha o direito de possuir mais do que uma determinada extensão de terras pertencentes ao Estado.
(2) Os Anais franco-alemâes eram uma revista editada em Paris por Marx e A. Ruge. Só foi publicado o primeiro número, em Fevereiro de 1844, que continha dois artigos de Marx: Sobre a questão judaica,, «Contribuição à critica da filosofia do direito de Hegel e um longo artigo de Engeis: «Esboço de uma critica da economia política. Em 1845, foi publicada a obra de Marx e Engels intitulada a Sagrada Familia, ou Crítica da Crítica crítica. Contra Bruno Bauer e consortes.