A essência democrática do pensamento de Marx

Júlia Lemos Vieira 

Karl Marx jovem

Ao lembrar o bicentenário de Marx é importante debater o fato de que a pouca relevância dada ao jovem Marx para o entendimento do comunismo do Marx maduro contribuiu para o que Korsch denunciou como perda de uma visão totalizante do “processo social da revolução” em Marx, perda que fez com que “uma teoria geral unitária da revolução social fosse transformada em uma crítica da ordem econômica burguesa, do Estado burguês, do sistema burguês da educação, da religião, arte, ciência e culturas burguesas” (apud GUIMARÃES, 1997, p. 138). Na verdade, a genealogia do comunismo marxiano se deu de modo completamente intrincado com o desenvolvimento de seu projeto emancipatório já no momento republicano, de modo que o seu materialismo não só não se desenvolveu numa contraposição unilateral à democracia, como buscou justamente um desenvolvimento e um aprofundamento desta.

O comunismo de Marx se desenvolveu opondo-se ao reducionismo tanto idealista quanto objetivista da razão pública num movimento político-filosófico que acompanhou o seu contexto histórico europeu e lançou um embrião essencial de defesa do poder popular já em 1837. Nos registros das correspondências de Marx com seu pai é evidente um apreço não só por Kant, mas também pela Revolução Francesa e pelos ideais rousseaunianos. Admitindo a oposição de Hegel contra o liberalismo, o republicanismo de Marx não se expressava de modo semelhante ao dos burgueses alemães. Marx promoveu em diferentes momentos críticas aos burgueses liberais chamando-os de “reacionários das cidades” (MARX, 1975c) e defensores de um “semiliberalismo” (MARX, 1975c) ao mesmo tempo em que defendia uma República Democrática que devesse educar o interesse individual transformando-o em interesse geral. A relação de tensão de Marx com o liberalismo, portanto, se deu muito antes do seu apreço pelas ideias comunistas e em nada reivindicou uma oposição à democracia.

A evidência dos primeiros textos de Marx de defesa da democracia é manifesta não só porque no âmbito teórico ele foi um jovem hegeliano que empreendeu uma oposição à perspectiva hegeliana de um todo lógico que se antecipa e se sobrepõe sobre as partes, mas também porque no âmbito prático de ativa militância política na luta contra a monarquia prussiana ele defendera num tom rousseaniano que a razão mais racional só é possível através de uma associação pedagógica da ideia do todo.

Em seus artigos jornalísticos publicados na Gazeta Renana a partir de 1842, Marx expresso uum liberalismo peculiar. Numa contraposição ao teólogo Hermes, por exemplo, ele concordou com Hegel que é somente no Estado que “o homem tem uma existência conforme a razão” (HEGEL, 1821, apud HELFER, 2008, p. 81) e, ao mesmo tempo, opôs-se a Hegel no modo como esta consciência da liberdade se daria não como um efetivar de uma razão pressuposta aos homens e simcomo uma posição absoluta da própria razão humana de maneira horizontal e pedagógica. A razão mais racional seria apenas aquela dada pela pluralidade dos homens na determinação do Estado e por isso era preciso construir o Estado a partir da ideia do todo em termos de razão social:

os filósofos não crescem como cogumelos, são frutos da sua época, do seu povo, cujos humores mais sutis, mais preciosos e menos visíveis circulam nas ideias filosóficas, é o mesmo o espírito que edifica os sistemas filosóficos no cérebro dos filósofos e o que constrói os caminhos de ferro com as mãos dos operários. A filosofia não está fora do mundo tal como o cérebro não é exterior ao homem (…) Mas se os professores de direito constitucional de outrora construíram o Estado a partir dos instintos, quer da ambição, quer da sociabilidade, ou, claro, a partir da razão, mas não da razão social e sim a partir da razão do indivíduo, pois bem, a concepção da filosofia moderna mais profunda deduz o Estado da ideia do todo. Ela considera o Estado como o grande organismo no qual as liberdades jurídica, moral e política devem realizar-se e no qual cada cidadão, obedecendo às leis do Estado, está a obedecer às leis naturais da sua própria razão, da sua razão humana […]Onde encontra Hermes a prova de que o Estado é um Estado cristão, que sua finalidade é, em vez de uma associação livre de seres morais, uma associação de crentes, em vez da realização da liberdade, a realização do dogma? […] a verdadeira educação “pública” do Estado reside, pelo contrário, na existência racional e pública do Estado. […] é o próprio Estado que educa seus membros, fazendo deles verdadeiros membros do Estado, transformando os objetivos individuais em objetivos gerais, o instinto grosseiro em inclinação moral, a independência natural em liberdade intelectual, fazendo que o indivíduo se desenvolva na vida do conjunto e que o conjunto viva no espírito do indivíduo. O nosso editor [Hermes], pelo contrário, faz do Estado não uma associação de homens livres que se educam mutuamente, mas um rebanho de adultos destinados a receber a educação de cima. (MARX, 1972f, p. 33-44).

Como podemos constatar, a proposta de Marx tinha nítida influência rousseauniana, dado que negava a realização da liberdade racional como coerção social e indicava o Estado verdadeiramente racional como um lugar horizontal de educação mútua do interesse pessoal em interesse coletivo. O Estado marxiano aproximava-se do pacto social proposto por Rousseau ao levar em conta um desenvolvimento pedagógico prático e se contrapor ao Estado como a imposição autoritária de uma razão em si e também ao negar que os legisladores pudessem ser diferentes de meros receptáculos da razão pública. Apenas a efetiva vontade geral do povo é que determinaria o caráter público e racional de um Estado.

Assim, embora seja inegável que Marx não explicitou formalmente uma teoria de Estado ou uma influência de Rousseau, é inegável que em sua oposição à monarquia prussiana de 1837 a 1843 há traços nítidos desse aspecto. Além de ser evidente que Marx promoveu uma defesa da democracia grega nos rascunhos de sua tese de doutorado, os termos de sua defesa de que a melhor razão do Estado é a razão mais filosófica dados como redator da Gazeta combinam com a perspectiva de que tal razão só se realizaria no desenvolvimento de uma associação republicana livre. Assim, já em 1837 Marx, diferentemente de Hegel, expressou que a verdadeira razão dialética seria apenas aquela razão sujeita à revogabilidade pelo povo; ou seja, uma razão aberta e não uma razão fechada. Grosso modo, num sentido lógico, a abertura já está contida em sua tese de doutorado porque é de inspiração epicurista: não existe uma razão em si, mas sim uma projeção da razão humana como razão em si. Num sentido histórico, é de inspiração rousseauniana: a realização da liberdade humana apenas se daria passando pela prática pedagógica de desenvolvimento do Estado universal. Marx não era nem um liberaltradicional acrítico da liberdade civil e nem um humanista idealista. O que sustentava o seu republicanismo era justamente a sua busca de uma fundamentação objetiva para a efetivação do humanismo, causa com a qual havia estabelecido um forte compromisso desde a sua juventude por conta do contexto peculiar de sua formação.

A partir dos seus artigos republicanos da Gazeta Renanae da crítica de Hegel à iniciativa individual livre Marx entrou em contato com o problema da perversão da comunidade social pela propriedade privada. Como redator militante, e sob influência hegeliana, ele tinha que lidar com os movimentos comunistas que cresciam na França e com os debates em torno das leis sobre questões de propriedade que se acaloravam na Prússia. Foi então que Marx embrenhou no estudo dos socialistas utópicos e, especialmente, de Proudhon. Ele começou a tratar da questão da propriedade privada tanto por esta ser a base da contraposição de Hegel – o filósofo que mais lhe influenciara – à democracia quanto por tal questão da propriedade privada confirmar-se concretamente como o maior problema da emancipação política até então. Ou seja, o problema da propriedade privada como perversão da comunidade humana não foi criado por Marx, mas já estava posto e encontrava-se cada vez mais inflado por conta de fatores históricos que levavam à insurgência mais frequente de movimentos comunistas ou, simplesmente, de opositores à lógica dos proprietários privados.

O aprofundamento de Marx no problema da propriedade privada foi desenvolvido sobretudo nos artigos Sobre o roubo de lenha e Crítica da Filosofia do Direito de Hegel e é por isso que estes constituem um engendramento de uma mudança radical do Marx republicano. Foi se tornando cada vez mais evidente que a propriedade privada – e a cisão entre interesse particular e interesse geral dela proveniente – não era natural e que não só poderia como deveria ser subsumida. Apartir desta compreensão Marx alterou seu modo de engajamento pela emancipação humana: voltou-se não mais apenas ao problema da superação do Estado privado, mas ao problema da superação da propriedade privada.

Como podemos apreender, tal alteração não explicitou um rompimento com os termos essenciais da defesa República Democrática que ele até então fizera e sim, mais exatamente, com o encontro de um novo lugar para o embrião desta República Democrática. O seu projeto de emancipação humana ampliou-se da esfera formal à esfera material: o estabelecimento dos seres humanos como sujeitos de suas ordenações, leis e destinos deixou de ser entendido como simples dissolução da monarquia e passou a ser entendido como dissolução como forma de poder apartada do povo em termos amplos. O processo de dissolução da alienação do poder político passou a ser compreendido como processo de dissolução da alienação do poder político na propriedade privada, como dissolução da própria instituição da propriedade privada na medida em que esta é, necessariamente, alienação do poder público em relação à determinação do próprio povo.

Marx passou a considerar a dissolução do Estado político e a dissolução do poder político alienado na propriedade privada (dos proprietários privados) como duas faces da mesma moeda no que tange aos grilhões dos homens. A alienação do poder do Estado político (Estado da propriedade privada) está pressuposta pela alienação do poder social e, portanto, é esta que deve ser negada fundamentalmente para que se negue a primeira.

Marx considerou em sua Crítica à Filosofia do Direito de Hegel que por intermédio da Revolução Francesa o homem chegou a constituir a sua razão mais livre, mas no sentido de constituí-la de modo tão absolutamente livre a ponto de constituí-la como uma razão em si/política em si. A constituição do Estado político mais livre não podia mais ser compreendida como constituição da liberdade dos homens, pois também era simultaneamente a constituição da mais completa alienação dos homens da política. E é pelo fato de buscar, desde a sua tese de doutorado, uma racionalidade mais racional como racionalidade que depende da determinação concreta dos homens é que Marxse tornou comunista: se emancipação humana implicava em tornar os seres humanos sujeitos então a emancipação humana implicava em dissolver a propriedade privada, ou seja, em dissolver a propriedade privada da política (o Estado político).

Bibliografia
Obras de Marx
a) Coleção
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Collected Works (MECW). New York: International Publischers, 1975. 50 v. Disponívelem:
<http://www.marxists.org/archive/marx/works/cw/index.htm>. Acesso em: 10 fev. 2012.

b) Edições selecionadas
MARX, Karl. (1839). Cadernos preparatórios. In: ______. Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro. Trad.: Conceição Jardim e Eduardo Lúcio Nogueira. Lisboa: Presença, 1972a.
______. (1841). Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro. 1972. Tese (Doutorado). Trad.: Conceição Jardim e Eduardo Lúcio Nogueira. Lisboa: Presença, 1972b.
______. (1844). Anais franco-alemães (Deutsch-FranzösischeJahrbücher): introdução à crítica da filosofia do Direito de Hegel. In: BADIA, Gilbert; BANGE, P.; BOTTIGELLI, Emile. (Org.). Sobre a religião. Trad.: Raquel Silva. Lisboa: Edições 70, 1972c.
______. (1843). Critique of Hegel’s Philosophy of Right. March 1842-August 1843. In: MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad.: Conceição Jardim e Eduardo Lúcio Nogueira. Lisboa: Presença, 1983.
Outras obras:
FEUERBACH, Ludwig. (1839). Towards a Critique of Hegel’s Philosophy. In; ______. Fiery Brook: selected writings of Feuerbach. Transl.: ZawarHanfi. New York: Doubleday, 1972.
FREDERICO, Celso. O jovem Marx: 1843-1844 as origens da ontologia do ser social. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia da história. Trad.: Maria Rodrigues e Hans Harden. 2. ed. Brasília: Ed. UnB, 1999.
HERMES, Karl. Editorial. Gazeta de Colônia, n. 179, 1842.
KANT, Immanuel. Da crítica ao juízo. Trad.: P. Quintela. São Paulo: Abril Cultural, 1970. (Coleção Os Pensadores).
______. (1787). Crítica da razão pura. Trad.: P. Quintela. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Coleção Os Pensadores).
LÖWY, Michel. (1938). A teoria da revolução no jovem Marx. Trad.: Anderson Gonçalves. Petrópolis, RJ; Vozes, 2002.
LUKÁCS, György. (1955). O jovem Marx: sua evolução filosófica de 1840 a 1844. In: LUKÁCS, Georg. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Org. e trad.: Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2009.
ROUSSEAU, Jean Jaques. (1762). O contrato social: princípios do direito político. Trad.: Antônio de Pádua Danesi. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.