USP fazia triagem ideológica de estudantes e professores na ditadura
A reitoria da Universidade de São Paulo (USP) mantinha uma agência de informação que fazia triagem ideológica e fornecia dados aos órgãos de segurança para perseguir alunos, professores e estudantes contrários à ditadura civil-militar (1964-1985).
Publicado 04/04/2018 10:10
O registro de parte dessas violações consta do relatório final da Comissão da Verdade da USP, concluído e entregue ao reitor da universidade, Vahan Agopyan, no final de março. O relatório é composto de 10 volumes, e contém documentos que trazem luz aos fatos ocorridos na época e esclarecem a responsabilidade da universidade nas violações.
O órgão que exercia o controle dentro da Universidade era a Assessoria Especial de Segurança e Informação (Aesi), criada em 1972, durante a gestão do reitor Miguel Reale (1969-1973).
A Aesi produziu inúmeros informes, que eram compartilhados com as Forças Armadas, com o Serviço Nacional de Informação (SNI), com o Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DOPS) e com as polícias. “Em muitos casos, a vigilância resultou em prisão, morte, desaparecimento, privação de trabalho, proibição de matrícula e interrupção de pesquisa acadêmica na instituição”, afirma o documento. O relatórios produzidos pela USP, de acordo com o ex-reitor Hélio Guerra Vieira, foram queimados sob sua ordem.
Vigilância e controle
Entre 1973 e 1979, foram produzidos 2.895 documentos, mais de 413 a cada ano e um fluxo de mais de um informe por dia. “Diante dos dados apresentados, é possível afirmar que a implantação da AESI dentro da universidade gerou uma prática de vigilância com vistas ao controle ideológico da comunidade acadêmica”, aponta a pesquisa da Comissão, criada em maio de 2013 e presidida pela professora Janice Theodoro da Silva.
Entre as atribuições da AESI, estavam vigilância e monitoramento das atividades realizadas. Diariamente três relatórios eram produzidos sobre a USP: pela manhã, tarde e noite.
A ingerência nas decisões da instituição se deu de várias formas mas as principais foram: contratos barrados ou não renovados, triagem ideológica de alunos e professores e manipulação de temas das pesquisas.
Grande parte o material do relatório foi encontrado no Arquivo Público do Estado de São Paulo, no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Fundo Serviço Nacional de Informações (SNI) e também no arquivo da USP.
As relações íntimas entre a USP e os órgãos de repressão da ditadura ficam claros quando se sabe que o chefe da AESI, o advogado Krikor Tcherkezian, visitava o DOPS. O nome dele aparece no livro portaria do centro de repressão, onde estão os registros de quem entrava e saía do órgão, localizado no centro de São Paulo.
Mortos e desaparecidos
Alunos, professores e funcionários da USP que morreram ou desapareceram sob tutela do Estado, em órgãos de repressão, também têm destaque no trabalho. São 47 pessoas, mais de 10% das 434 pessoas mortas e desaparecidas que constam do relatório final da Comissão Nacional da Verdade.
A maioria dos 47 casos da USP têm relação com militância em partidos de esquerda. O volume dedicado aos mortos e desaparecidos traz a história das vítimas, o histórico escolar, aposentadorias compulsórias e decisão pela militância em partidos de esquerda.
Um dos casos mais emblemáticos é o de Ana Rosa Kucinski, professora no Instituto de Química da USP e militante da Ação Libertadora Nacional (ALN).
Ana Rosa foi sequestrada e desapareceu junto com seu marido, físico e também militante da ALN, em 22 de abril de 1974, e levados para a Casa da Morte, em Petrópolis, no Rio de Janeiro, um dos principais centros clandestinos de detenção da ditadura. No ano seguinte, Ana Rosa foi demitida por “abandono de função”.
Em abril de 2014, 40 anos depois de sua morte, a USP anulou a demissão de Ana Rosa por “abandono” e pediu desculpas à família. No mesmo ano, foi inaugurada uma escultura em homenagem à professora, instalado na porta principal do instituto de química, onde está escrito: “Ana Rosa Kucinski, professora sequestrada e morta pela ditadura: que sua lembrança inspire as futuras gerações a lutar, como ela, contra os que tentam sufocar a liberdade”.
Cassações via AI-5
As perseguições ocorridas na Faculdade de Medicina e no Hospital das Clínicas, que resultaram em cassações, aposentadorias e prisões de professores também constam do levantamento. Um dos casos, foi o da aposentadoria compulsória do reitor em exercício, professor Hélio Lourenço de Oliveira, em 29 de abril de 1969, por meio do Ato Institucional número 9 (AI-5). O AI-5 também amparou cassações de professores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), como Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha.
Os professores Sérgio Ferro e Rodrigo Lefevre, da FAU, foram processados e reintegrados à USP, depois de presos e torturados. Em depoimento, Ferro afirma que a universidade é convivente com a situação até os dias atuais:
“Ausente desde 1972 do Brasil, eu, Sérgio Ferro, não tenho conhecimento de nenhuma declaração oficial ou de alguma ação clara que demonstre repúdio por parte da USP ou da FAUUSP com relação a inquéritos, prisões, torturas ou assassinato perpetrados contra professores, alunos e funcionários destas instituições. Espero que me engane. Entretanto posso afirmar que nem o professor Rodrigo Brotero Lefèvre, nem eu, nunca recebemos nenhuma palavra destas instituições condenando ou lamentando o que aconteceu conosco, nem propondo reintegração ou qualquer medida de reparação. A mesquinhez e a indiferença chegam ao ponto de não me atribuírem a pequena aposentadoria a que tenho direito”.
Atentados
Há destaque também ao cerco ocorrido na Faculdade de Direito, onde eram professores um dos autores do AI-5, Luís Antônio da Gama e Silva, e o reitor Miguel Reale. Dois dos docentes da faculdade foram vítimas de atentados: os professores Dalmo de Abreu Dallari e Alberto Moniz da Rocha Barros, falecido em 9 de dezembro de 1968 após sofrer um infarto.
Dois meses antes, em 16 de outubro, Rocha Barros, que já era hostilizado por suas posições, foi atacado por alunos da Faculdade de Direito que eram integrantes do Comando de Caça aos Comunistas (CCC). Em 2 de julho de 1980, Dallari foi sequestrado e espancado.
Um dos volumes trata de perseguições a professores da USP, fruto de Inquérito Policial Militar (IPM), envolvendo professores dos cursos de História e Geografia. O conteúdo é analisado pelo professor Bóris Fausto.
Em seu depoimento à comissão, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse: "Esse pessoal da direita da USP é responsável direto por conivência, ação e omissão. Se você for ver a Comissão Interna da USP, eles eram mais ferozes que os militares, eles pediam a nossa cabeça."
No capítulo dedicado à Escola de Comunicação e Artes (ECA) há uma análise da repressão e da resistência de docentes, assim como depoimentos, entre elas o da professora Cremilda Araújo Medina, no qual relata como não se podia divulgar nada crítico ao regime: “Eu era chamada à direção toda semana”.
Medina conta que após a Agência Universitária de Notícias da faculdade divulgar uma tese crítica sobre o Plano Nacional de Habitação, foi chamada pelo diretor faculdade, que a mostrou um telegrama do ditador Ernesto Geisel, onde dizia: “"Agência Universitária de Notícias é atentatória à segurança nacional. A senhora está fazendo esse trabalho".
A Comissão da Verdade da USP faz 14 recomendações, entre elas a realização de ato de desagravo em homenagem a todos da comunidade acadêmica que sofreram violências físicas e morais durante a ditadura militar; auxílio na identificação médico-legal das ossadas de desaparecidos políticos que tenham sido enterradas clandestinamente no cemitério de Perus; solicitação de reconhecimento, pelas Forças Armadas, especialmente pelo II Exército, de sua responsabilidade institucional diante das violações de direitos humanos que ocorreram no âmbito da Universidade, uma vez que a documentação comprovou a relação entre funcionários da Universidade e a cúpula das Forças Armadas e do II Exército na violação dos aludidos direitos.
Críticas
A Comissão da Verdade da USP foi criada em 7 de abril de 2013 durante o mandato do reitor João Grandino Rodas, após intensa pressão e mobilização de professores e funcionários da USP, durante o ano de 2012. A história da criação da Comissão, portanto, deveria constar do relatório final, afirma Pádua Fernandes, coordenador do GT de Direito, Memória e Justiça e Transição do IPDMS (Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais).
Além disso, critica, a Comissão manteve seus trabalhos em segredo, sem realizar audiências públicas e prestar esclarecimentos à sociedade sobre o andamento das pesquisas. “O que não é exatamente uma forma transparente de agir, ou de engajar democraticamente a comunidade em seus trabalhos”. Fernandes também lamenta que não conste do documento as razões pelas quais a comissão, que acabou oficialmente em julho de 2016, tenha finalizado os trabalhos apenas em março de 2018.
Fernandes também critica o fato de não constar do texto final as dificuldades encontradas no caso de Ana Rosa Kucinski. "Em 2013, a faculdade de Química recusou-se em receber Bernardo Kucinski, irmão de Ana Rosa".