Tráfico não opera da forma como Marielle foi executada, diz delegado
Orlando Zaccone, delegado da polícia civil do Rio de Janeiro, faz parte de um grupo de policiais civis e militares suprapartidário, autointitulado “Policiais Antifascismo”, que propõe o debate de uma nova política de segurança, tendo a garantia dos direitos humanos como prioridade. Para ele, a morte de Marielle Franco tem forte conotação política.
Publicado 16/03/2018 18:37
O delegado participa do Fórum Social Internacional, em Salvador (BA), e falou com exclusividade para a RFI Brasil.
RFI: O senhor acha que foi uma execução?
Orlando Zaccone: Pelas primeiras informações, a forma como os disparos foram efetuados, como a ação ocorreu, a probabilidade é imensa de ter sido uma execução. Isso abre um campo para o debate político, onde temos dados de que o Brasil é um dos países onde militantes de direitos humanos estão em situação de risco e onde há mais números de homicídios no setor. No caso da Marielle, nós teríamos ainda um aspecto específico. Ela não era uma defensora dos direitos humanos de gabinete. Ela era uma pessoa, uma mulher negra, com origem na favela da Maré, e ela colocou toda a sua militância, mesmo como parlamentar, dentro das comunidades. Nós aqui do Rio de Janeiro já tínhamos notícias, há pelo menos mais de dois anos, de ameaças constantes a coletivos de jovens que militam pelos direitos humanos dentro das favelas. A execução da vereadora Marielle apresenta um quadro político onde o acirramento da disputa política no Brasil passa pela ideia de que precisamos estender a ordem constitucional e suspender direitos humanos para garantir a governabilidade. Isso é algo que tem sido construído pelo menos desde a década de 90, através do discurso de que direitos humanos atrapalham a segurança pública. Isso associa como inimigos os defensores dos direitos humanos. É bastante provável que essa execução tenha motivação nas atividades desenvolvidas pela vereadora Marielle na luta pelos direitos humanos.
RFI: Marielle fazia parte de uma comissão e já tinha mostrado uma posição muito crítica em relação à intervenção militar no Rio de Janeiro. O assassinato teria relação com essa posição?
OZ: Não é possível fazer essa afirmação neste momento. O que pode ser dito e construído politicamente é que existe, junto com a chegada da intervenção militar, um discurso que aponta para a restrição de direitos nas comunidades. Isso vem com a movimentação que os militares estão fazendo, para que sejam construídas, em pautas legislativas, a suspensão de direitos e garantias dentro das comunidades, como é a questão do mandado de busca coletivo, a questão da lei do abate, que permite que uma pessoa que seja suspeita de portar uma arma, possa ser atingida letalmente numa ação policial. Então nós temos aí, na chegada da intervenção, um reforço do discurso de que temos que restringir direitos e garantias individuais para a manutenção de uma certa ordem. Nesse contexto, aqueles que se opõem a essa construção, passam a estar no outro campo político.
RFI: Quando o senhor fala em “aqueles que se opõem”, podemos nos referir a quem? A carteis do tráfico, a grupos militares, paramilitares, forças extremistas?
OZ: A ideia que se constrói em relação aos que se opõem é que são criminosos – traficantes, milicianos – e aí você joga no mesmo pacote aqueles que defendem políticas de direitos humanos. Ou seja, você joga, ao lado de traficantes e milicianos, os defensores de direitos humanos. Aí você constrói esses últimos como inimigos. A partir do momento que você localiza interesses contrários à intervenção em grupos criminosos, sejam de traficantes de drogas, sejam de milicianos, e a partir do momento que você tem defensores de direitos humanos contra a forma com que está sendo construída a intervenção, é muito fácil você construir que os defensores de direitos humanos estão ao lado de criminosos.
RFI: Estamos vendo forças extremistas a favor da candidatura de Jair Bolsonaro, que são de uma extrema virulência contra as normas democráticas e contra defensores de minorias. O que aconteceu poderia ser uma exacerbação da ação desses extremistas, que vêm ganhando terreno?
OZ: Sim, o trabalho deles é de muitos anos, com a elaboração de que temos, de um lado, os defensores dos direitos humanos, e, do outro, a ordem, a segurança. Vem se construindo, desde os anos 1990, de que a defesa dos direitos humanos é um estorvo para a segurança pública, para a ordem. Ou seja, se constrói, no ambiente social, que os direitos humanos atrapalham a segurança pública. E o discurso, portanto, extremista, que quer suspender a ordem constitucional para estabelecer uma certa ordem, ganha impulso. Isso contribui evidentemente para que grupos que objetivem ações como essas, que no Brasil não são casos isolados, uma vez que somos um dos países com maiores índices de violência contra defensores de direitos humanos. Isso é muito grave. A Marielle não ficava em gabinete, não era de uma ONG, mas uma parlamentar que ia para as comunidades, conversava com a população pobre, que é o alvo dessas políticas de suspensão. Ela, por conta disso, da sua origem, da sua condição de mulher, negra, passa a ser um alvo potencializado.
RFI: Então o senhor acha que esse crime foi contra a Marielle defensora dos direitos humanos ou é também contra a Marielle mulher e negra, que incomoda?
OZ: Sim, isso é um contexto só. Essa separação não deve existir, pois a defesa dos direitos humanos contempla a questão de gênero, de raça. Ela tinha a vivência da favela, sabia como a polícia operava nesse ambiente, trazia as denúncias de pessoas que estavam lá dentro. Ela não era só um discurso favorável aos direitos humanos. Ela era um discurso que apontava a forma como esses direitos humanos estão sendo constantemente violados dentro das favelas. Por isso ela passou a ser um alvo. Embora a gente ainda não tenha a conclusão das investigações, tudo aponta que há uma motivação política por trás dessa execução. E digo mais uma coisa: espero que eu esteja enganado.
RFI: Poderia existir alguma participação do narcotráfico?
OZ: Para ser sincero, o tráfico não opera da forma como se deu a mecânica da execução da Marielle. O carro emparelhou, eles observaram o interior do veículo, concentraram todos os tiros na Marielle. O tráfico opera de uma outra forma. Iam sequestrar o carro, levar para dentro de uma comunidade, iam fazer micro-ondas [no jargão policial: colocar vítima dentro de um pneu e atear fogo]. Não existe nenhuma informação em concreto que justifique a possibilidade disso ter sido praticado sem motivação política. Tudo aponta para uma ação de retaliação. Mas, repito, espero do fundo do coração que eu esteja errado.