Será o fim da disputa eleitoral na América Latina?
A disputa na América Latina já não é principalmente eleitoral. A restauração conservadora tem outros mecanismos. E não necessariamente são as urnas. A via escolhida [pela direita] quase sempre é outra. Cada caso é diferente: tudo depende do país em questão. Utilizam uma ou outra ferramenta em função do cenário e da disponibilidade.
Por Alfredo Serrano Mancilla*
Publicado 20/02/2018 13:14
Cada contexto condiciona o método de intervenção para deter/eliminar o bloco progressista. Se ainda têm controle do Poder Judiciário, então, se busca essa via para conquistar sentenças contra; se o que ostentam é o Poder Legislativo, se procura um golpe parlamentar. E sempre, seja onde for, o poder econômico e o poder comunicacional atuam de forma conjunta. O primeiro usando todas suas armas para colocar em xeque o equilíbrio econômico-social alcançado; e o segundo corroendo a imagem com pós-verdades ou fake News que acabam sendo parte do sentido comum destituinte. E a esta lista de poderes não falta nunca, jamais, “o poder internacional”, que se une para aplicar todos os dispositivos de pressão possíveis para deslegitimar quando convém, ou legitimar opções não democráticas para seus interesses.
No Brasil, claramente não vão permitir que Lula se candidate para as eleições presidenciais, usando uma desculpa judicial sem sentido. Antes, já haviam tirado Dilma da presidência, apesar do resultado eleitoral, com um ridículo pretexto de “pedaladas fiscais”, mediante um golpe parlamentar. Poder Judicial e Legislativo, orquestrados com o econômico e o comunicacional, tudo isso com a cumplicidade internacional, para “ganhar” sem ter que passar pelas urnas. Michel Temer governa como democrata apesar de não ter sido candidato à presidência.
Equador, outro cenário e outros métodos. Se usou o sucessor para evitar que a Revolução Cidadã tivesse continuidade. Graças a um pacto entre o atual presidente, Lenín Moreno, e toda a velha partidocracia, houve uma consulta sem consultar a Corte Constitucional, com o único objetivo de limitar que Rafael Correa possa se candidatar novamente à presidência. Um novo modelo: restaurar por dentro. A oposição se apresentou nas eleições e perdeu. Mas isso não foi obstáculo para ganhar a batalha política graças ao fato de terem usado o “rancor contra Correa” de Lenín. A banca e todos os meios se somaram ao novo consenso restaurador com a intenção de dar fim ao ciclo progressista encarnado na figura de Correa.
Na Argentina, apesar de uma notável arremetida comunicacional e econômica, a via eleitoral bastou para acabar com o período kirchnerista. Havia uma janela: a candidata não era Cristina Kirchner, e sim o sucessor, Daniel Scioli. Eles ganharam com a mínima diferença de votos. E rapidamente vieram as prisões judiciais, os processos abertos e a cobertura da grande imprensa. Ainda é cedo para saber como será a disputa presidencial de 2019, mas não há dúvidas de que tentarão tirar da jogada Cristina ou qualquer outro candidato com potencial para vencer com uma proposta progressista, seja pela via judicial ou parlamentar.
Na Venezuela, tudo se amplifica. O último é o mais evidente: definitivamente a oposição decide não participar das eleições. Demonstra assim que não tem interesse na via eleitoral para tentar obter o poder político. De fato, neste país, tentarma um golpe de Estado no formato ortodoxo (em 2002); ensaiaram e continuaram com o golpe não convencional com uma guerra econômica sustentada com alta intensidade (via preços e desabastecimento); há violência na rua e muitas mortes; procuraram um estalo social para derrubar o presidente; há decretos dos Estados Unidos com ameaças e bloqueio; há praticamente tudo de tudo (OEA, Parlamento Europeu, Grupo de Lima, Mercosul, Banca Internacional). E agora, finalmente, não aceitam participar das eleições. Estranhos democratas que não acreditam nas regras democráticas quando pressentem que vão perder. O interessante deste caso é que neste país, o atual governo tem absoluta consciência que o campo de disputa é tanto o eleitoral como em todas as outras dimensões. E isto permite a Maduro ser um “supersobrevivente” nesta nova fase.
Na Bolívia, também aconteceu algo parecido. O referendo revogatório foi atravessado por um reality show que prejudicou a popularidade de Evo Morales. A artilharia pesada virá para as eleições presidenciais de 2019. Porém, o presidente entendeu isso faz tempo, desde as tentativas de interrupção democrática durante a Assembleia Constituinte, que a disputa é multifacetada. Não significa que será fácil, e tudo é possível a partir de agora. Mas até o momento, Evo parece ser o outro “supersobrevivente” desta arremetida restauradora. Soube superar a última grande armadilha: encontra o mecanismo legal que lhe permite a reeleição. Era consciente que viriam críticas por isso, mas preferiu isto a pôr em risco a continuidade do projeto. Sábia decisão para seguir adiante com o aval do povo boliviano.
Definitivamente, estamos em outra fase histórica do século 21 nesta “América Latina em disputa”. A via eleitoral conta, mas não é o único caminho escolhido para acabar com o ciclo progressista. Alguns sabem disso desde sempre, e outros já aprenderam depois de ter sofrido na pele. O campo de disputa política é cada vez mais complexo: os votos são necessários, mas também o são o poder econômico, comunicacional, Legislativo, Judicial e internacional. E o militar, ainda que pareça uma questão do passado, jamais devemos deixar de prestar atenção porque sempre está mais presente do que imaginamos.