Juiz faz análise crítica da Lava Jato com base na matemática aplicada
O filme Uma mente brilhante, protagonizado por Russell Crowe em 2001, conta a história do pesquisador estadunidense John Nash, que resolveu na década de 1950 um problema matemático relacionado à teoria dos jogos e foi recompensado com o Prêmio de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel.
Por Daniel Giovanaz, no Brasil de Fato
Publicado 27/02/2017 10:04
A teoria dos jogos tornou-se um ramo da matemática aplicada há cerca de 80 anos, e permite o estudo das tomadas de decisões entre indivíduos em situações onde os ganhos de uns dependem das decisões dos outros. Ou seja, há uma relação de interdependência, como em uma espécie de jogo.
O princípio básico da teoria é que todos estão interessados em aumentar seus ganhos e diminuir suas perdas. Para isso, muitas vezes os indivíduos que “competem” entre si são pressionados a elaborar estratégias de cooperação. É o caso, por exemplo, da delação premiada: um sujeito confessa participação em um delito e aceita “contar o que sabe” em troca de uma diminuição de pena. As informações – procedentes ou não – são moedas de troca que podem levá-los a obter a liberdade.
O juiz Alexandre Morais da Rosa, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e autor do livro A Teoria dos Jogos aplicada ao Processo Penal, conversou com a reportagem do Brasil de Fato e debateu os principais dilemas suscitados pela Operação Lava Jato.
Muitos dos aspectos mencionados por Alexandre estão contemplados no livro inédito Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos, que tem lançamento previsto para março.
Confira abaixo os melhores momentos da entrevista. Ao final do texto, há um glossário com conceitos relevantes para a compreensão das respostas.
Brasil de Fato: Em um artigo publicado em dezembro de 2016, o senhor afirma que “a escassez de liberdade afeta o modo com que o sujeito manifesta sua vontade”. O que o ordenamento jurídico instituído pela Constituição orienta sobre a qualidade das informações obtidas nessas circunstâncias em que a liberdade está em jogo?
Alexandre Morais da Rosa: Tenho trabalhado a noção de processo penal e de colaboração ou delação premiada pela teoria dos jogos, em que o dilema do prisioneiro (1) é um dos mecanismos de pressão. O fato de o investigado estar preso não é causa suficiente para o reconhecimento da ausência de legitimidade da delação. Mesmo assim, pode-se apontar que a prisão cautelar (2) é um forte incentivo para quem deseja obter a liberdade. As coordenadas do jogo processual penal se modificaram. A depender do caso, pode-se reconhecer a ausência de manifestação de vontade desprovida de coerção, ainda mais quando a liberdade é moeda de troca: coopera que obtém a liberdade. A prisão deixa de ter caráter cautelar, transformando-se em emboscada para delação.
No mesmo texto, o senhor aponta que no Brasil há dois modos de produção de verdade processual. “A primeira depende da existência de processo penal com acusação, formalização de relação processual, exigências probatórias e decisão estabelecida por terceiro. (…) Na segunda hipótese, inserida por mecanismos de consenso, a acusação e a defesa ‘negociam’ tanto a tipificação da conduta como a pena (ou sua ausência).” É correto dizer que a Lava Jato utiliza principalmente a segunda hipótese?
O primeiro modelo não existe mais no âmbito da Lava Jato, assumindo-se novos standards [critérios] probatórios, quer em relação ao delator, quer no tocante aos delatados. Não se trata de plea bargaining (3), nos moldes dos EUA ou da Inglaterra, mas opera em lógica negocial.
A condução coercitiva do ex-presidente Lula, há cerca de um ano, teve grande repercussão porque o acusado disse não ter se recusado, em momento algum, a colaborar com as investigações. Na sua interpretação, o uso da condução coercitiva nesse caso encontra respaldo no ordenamento jurídico?
A condução coercitiva é uma modalidade estranha ao processo penal, decorrente de interpretação obtusa do Código de Processo Penal. É sempre um mecanismo autoritário, dado o direito ao silêncio. Ela tem sido utilizada como trunfo ou blefe para constranger os “conduzidos” à colaboração com as investigações. Ninguém deveria ser conduzido coercitivamente a prestar declarações, já que o investigado ou acusado tem o direito de não produzir prova contra si mesmo, por disposição internacional e constitucional. Por outro lado, mesmo em hipóteses que se entende cabível, deve acontecer uma resistência preliminar. Conduzir diretamente é uma das faces do Processo Penal do Espetáculo, apontada pelo [juiz] Rubens Casara. Imaginemos uma investigação preliminar contra um membro do Ministério Público ou da magistratura, cujos endereços são possíveis, utilizando-se a condução coercitiva? O tratamento deveria ser igual para todos.
Uma reportagem da revista Piauí publicada em junho de 2016 relata que a delação do ex-senador Delcídio do Amaral foi obtida a partir do uso de “um gás de combustão” em um quarto trancado, sem luz. Se comprovada essa informação, os elementos probatórios obtidos na delação devem ser reconsiderados?
O uso de qualquer elemento externo de pressão pode transformar a livre manifestação de vontade em decisão viciada. A depender das apurações, pode-se aventar a nulidade. O problema maior é que depois de obtida, a anulação depende do Poder Judiciário. Aí a coisa complica, justamente porque as informações já ganharam publicidade e deixa de ser interessante, do ponto de vista das recompensas, qualquer reconhecimento da nulidade. O delator pode ficar encurralado diante do jogo que se opera na delação premiada. Jogar na delação não é para jogadores processuais amadores. Quem não se der conta disso é um jurista nefelibata (4).
Ao que parece, na Operação Lava Jato, é necessário para um acusado obter o máximo de informações sobre os objetivos da operação – ou “onde ela quer chegar” – para que possa oferecer as respostas que mais satisfaçam os acusadores e lhe permitam, a ele mesmo, ganhar mais (ou perder menos, no caso da sua liberdade). Dado que na Lava Jato não há clareza sobre objetivo final da operação, como isso interfere na dinâmica do jogo?
É um mercado de compra e venda de informações. A depender dos investigadores, teremos interesses diferentes. Sem inventariar qual o foco/alvo, oferece-se informações sem valor de face. Em cada momento, diante da dinâmica da operação, uma informação que era relevante, deixa de ser. No jogo da delação a questão é de “momento certo”, sabendo-se operar ciente dos jogos ocultos entre os delatados e Estado. Não basta querer vender, porque será preciso um comprador interessado. Compreender o que deseja o comprador, os blefes, trunfos, as jogadas de ultimato (pegar ou largar), assim como as táticas de negociação, portanto, mudam o contexto do dispositivo da delação. Vivemos a lógica de mercado penal e quem opera com a matriz teórica do processo penal baunilha (5) corre o risco de ser um “trouxa”. Sem compreender a dimensão do mercado judicial penal, as críticas são muito ingênuas.
Glossário:
1) Dilema do prisioneiro: Problema clássico da teoria dos jogos, formulado na década de 1950, em que os “jogadores” são dois prisioneiros que buscam a liberdade. Embora ambos pareçam estar em uma posição de enfrentamento ou competição, a melhor estratégia para resolução do problema é a cooperação.
2) Prisão cautelar: Decretada antes do esgotamento dos recursos. As modalidades mais conhecidas são as prisões temporária, em flagrante e preventiva.
3) Plea bargaining: Acordo em que o acusado aceita se declarar culpado em troca de alguma concessão por parte dos representantes do Ministério Público.
4) Juiz nefelibata: Aquele que tenta se esquivar da realidade.
5) Processo penal baunilha: Aquele que desconsidera a complexidade das interações humanas (afetos, paixões, pré-julgamentos, jogos de interesse) e pretende operar em um mundo “de fantasia”.