Sergio Reis: O factoide da 3ª cota do volume morto do Cantareira
Os últimos acontecimentos relativos à crise hídrica esclarecem, como nunca, qual era, é e vai ser a estratégia da Sabesp para lidar com o problema: 1) nada de racionamento oficial; 2) só reduziremos as vazões de saída na medida em que for possível trocar o abastecimento dos bairros para outros sistemas; 3) o PCJ não é prioridade; 4) vamos gastar toda a água, até a última gota, custe o que custar.
Por Sergio Reis, no Blog do Nassif
Publicado 20/10/2014 12:25
Esse era o plano tecnopolítico de Alckmin, lá em Janeiro, quando se apercebeu da crise. E, a não ser que haja uma mudança muito significativa (explico ao final do texto), é dessa forma que ele conduzirá a crise, mantendo a aposta inicial feita contra a natureza em nome de sua sobrevivência eleitoral. E, a cada instante, parece mais evidente que o Governador perdeu em seu blefe, sendo forçado a se agarrar a um prognóstico pluviométrico cada vez menos provável.
O mais novo factoide ventilado pela Sabesp – identificado, pela primeira vez, em uma reportagem do Estadão de Sexta-feira que reproduz uma nota à imprensa da empresa – é o anúncio de que há uma terceira cota para ser extraída, da ordem de 162 bilhões de litros. A revelação parecer ter o sentido de dar um sinal de alento para os acionistas (os títulos da companhia estão desvalorizando de forma impressionante a cada nova notícia negativa) e, subsidiariamente, para a população. A revelação da existência dessa nova cota é o argumento fundamental contido – e não desnudado, até então – na retórica de Alckmin e Mauro Arce a respeito da não-necessidade de racionamento até Março de 2015, mesmo que não chova. Mas há uma torrente de problemas gigantescos nessa expectativa “tranquilizadora”.
Vejamos: hoje, temos cerca de 30 bilhões de litros do final da primeira cota do volume morto. Sendo bastante generoso, teríamos mais 100 bilhões de litros da segunda cota. E, finalmente, mais esses 162 bilhões de litros da suposta terceira cota. No total, portanto, haveria “à disposição”, ainda, 292 bilhões de litros de volume morto para serem retirados, abstraindo-se, é claro, quaisquer problemas do ponto de vista da engenharia para viabilizar a sucção do líquido em cotas tão baixas, além, obviamente, da circunstância dessa água conter, de fato, os metais pesados depositados ao longo de décadas – exigindo tecnologias de tratamento e filtragem as quais não sabemos se a Sabesp as possui. Desconsiderando-se toda a irresponsabilidade contida nesse propósito de se extrair todo esse volume morto, há que se dizer que esses são os menores problemas fáticos contidos na estratégia do Governo.
É preciso esclarecer que, de fato, de uma perspectiva matemática ou formal, conforme nos mostram os relatórios de monitoramento diários da ANA, o Sistema Cantareira possui, ainda, cerca de 330 bilhões de litros de água. Esse valor expressa um cálculo com pretensão de precisão a partir de exercícios de batimetria – aparelhos sonares são utilizados para “desenhar” a topografia subaquática das represas e, a partir daí, calcular a área e o volume de água que podem, em tese, estar contidos ali. No caso do Cantareira, a atualização desses volumes era um dos compromissos contidos na renovação da outorga de 2004. O trabalho foi feito, dando maior precisão aos cálculos. Com relação às represas Atibainha e Cachoeira, contudo, há exercícios em dissertações de mestrado que estimam para baixo os dados estipulados em documentos oficiais, possivelmente em razão de assoreamentos. Com relação aos reservatórios do Alto Tietê, sequer existem, ao que parece, esses levantamentos mais precisos – e que, ainda assim, não são milimétricos. O fato é, contudo, que para além das imprecisões, há o problema prático da existência de relevos acidentados, em empoçam as águas e dificultam enormemente – quando não inviabilizam – a extração total desses volumes.
Ignorando tudo isso, Alckmin e a Sabesp demonstram o interesse em extrair tudo o que a Cantareira ainda tiver de água. Parece absolutamente irrelevante, então, condenar à morte, sem qualquer peso de consciência, esse sistema. Se é evidente que, hoje, ele já está colapsado, extrair o pouco de água que resta trará consequências ambientais incalculáveis. Impressiona, por sinal, como possam existir ambientalistas que consigam defender esse governo e, por conseguinte, o crime que está cometendo – talvez o maior já levado a cabo por uma administração pública na história do país. Pois aqui (e não seria preciso explicar) não se trata de um caso de desmatamento da Amazônia que resulte da falta de qualidade da fiscalização governamental ou de sua conivência, mas sim de uma ação concertada, intencional, de exploração de recursos naturais até o seu esgotamento diante da não adoção de soluções alternativas a contento, por parte de um governo, e não de um agente particular. Difícil de imaginar uma situação paralela a essa.
Esses supostos 292 bilhões de litros remanescentes, então, permitiriam com que chegássemos até o final de Março de 2015 sem o racionamento oficial. Considerando-se que as perdas mensais sejam de cerca de 50 bilhões de litros ao mês, entraríamos em Abril do próximo ano com 10-20 bilhões disponíveis. E isso, repito mais uma vez, abstraindo-se todas as dificuldades operacionais já mencionadas. Nesse cenário absolutamente ideal (que é, na verdade, incrivelmente distópico), Alckmin teria cumprido a sua promessa feita no começo do ano, de chegar à estação seca de 2015 sem ter praticado o racionamento tradicional (apenas o velado, já conhecido, baseado na redução da pressão da água diante do esgotamento gradativo do sistema). A que custo? Ao custo da entrega de 20 milhões de pessoas à completa e absoluta falta d’água, talvez por, no mínimo, dois anos. Dá para imaginar que 10% da sua população e 25% do PIB do país fiquem sem o item mais essencial à vida e que o governo responsável por isso fique impune? Pessoalmente, só começaria a acreditar minimamente na força das instituições responsáveis por distribuir justiça neste país a partir da responsabilização administrativa, cível e penal do Governador e dos demais partícipes desse esbulho hídrico – o que, hoje, julgo difícil que ocorra.
No entanto, todo esse cenário desenhado acima muito dificilmente ocorrerá, não só por questões operacionais e logísticas, mas em razão de disputas legais – as quais não significarão, como dito, a responsabilização de Alckmin, mas sim uma guerra pelo pouco que resta da água. Explico.
Conforme descem os níveis remanescentes de água nos reservatórios, eles se aproximam das comportas que enviam a água para o PCJ, a bacia cujos rios abastecem Campinas e dezenas de cidades do entorno (cerca de 3 milhões de habitantes, conforme a Ação Civil Pública do MP). Caso a água desça até patamares inferiores aos dessas comportas, o que acontecerá é simples: todas essas cidades dependerão apenas das afluências naturais do Piracicaba, do Capivari e do Jundiaí, e então o colapso hídrico estará definitivamente instalado – já que mesmo os 4 m³/s que estão sendo destinados, hoje, para a bacia a partir do Cantareira estão sendo insuficientes, conforme observamos para o caso de Campinas.
O que a SABESP estará fazendo na prática, então, será “roubar” a água do PCJ para atender, via bombeamento, os cidadãos da região metropolitana de São Paulo. Seria um case histórico de “hierarquização de cidadanias”, consubstanciado na escolha prioritária dos 15 milhões da RMSP em detrimento dos abastecidos pelo PCJ. Algo, também, sem paralelos, provavelmente, na história da administração pública, pelo menos a estadual.
Isso já está muito próximo de ocorrer no caso do Atibainha, conforme já relatei em outros textos. A segunda cota do volume morto desse reservatório, na prática, já invade os níveis da comporta que envia a água para o PCJ. Isso inevitavelmente ocorrerá, também, a partir da metade da extração da segunda cota do Jaguari-Jacareí e, finalmente, no Cachoeira, cujo volume morto seria extraído nessa eventual terceira cota.
É evidente, contudo, que tudo isso não acontecerá impunemente. Vivenciaremos uma imensa guerra pela água, uma situação sem precedentes, também, na história do país. A Agência da Bacia PCJ, provavelmente, é a mais articulada e engajada de todas as agências do Estado. É aquela que, aparentemente, possui uma relação mais próxima com o Ministério Público e que, ainda, tem atuado com mais autonomia na busca pelo endereçamento do histórico déficit de produção de água para a região. Não é à toa que as rusgas com a Sabesp, com o Daee e com a ARSESP não vêm de agora. É possível encontrar, em vários relatórios que descrevem o contexto da região, críticas à falta de atenção dada pelo Governo do Estado àquela bacia da perspectiva do aperfeiçoamento das políticas de recursos hídricos para a localidade.
Foi a partir desse engajamento, inclusive, que eles têm buscado expandir a capacidade de produção de água para a região – deram início, p.ex., aos estudos que desembocaram na ideia da construção das represas de Duas Pontes e Pedreira, que apenas mais recentemente foi “comprada” pelo Governo tucano (do ponto de vista da viabilização financeira). Também foi diante da inação da Administração estadual que desenvolveram uma agência reguladora específica para a bacia, a Ares PCJ, uma novidade institucional que não foi digerida pelo governo.
No caso do Cantareira, já foi possível encontrar declarações que expressam críticas ao bombeamento dos volumes mortos no sentido que descrevi acima. Ainda antes da Ação Civil Pública do MP, houve manifestações que colocavam a viabilidade da continuidade dessa extração da água em níveis tão baixos apenas se bombas também fossem colocadas para enviar o líquido para as comportas das represas, de forma a manter o transporte de água – previsto na outorga – para os rios do PCJ. Não há, aparentemente, planejamento por parte da Sabesp para implementar medidas como essa, capazes de manter uma segurança hídrica mínima para aquelas populações.
Se a extração de uma segunda cota do volume morto já será um feito absolutamente temerário, a retirada de uma terceira parcela significará não só a morte definitiva do Sistema Cantareira, mas também uma atitude criminosa contra milhões de habitantes diante de uma escolha consciente da Sabesp por manter o abastecimento, ainda que precário, apenas para a região metropolitana de São Paulo. Mas, como a agência PCJ é particularmente estruturada, é certo que essa situação não prosseguirá sem uma série de imbróglios legais, representações, processos, liminares e recursos, que transformarão os próximos meses em um período particularmente turbulento e tumultuado – expondo, de forma definitiva, a ingovernabilidade de Alckmin, a inoperância de seu governo e a sua incompetência – antes da tragédia final da falta d’água incontornável.
De um ponto de vista climático e hidrológico, os próximos meses serão muito difíceis. Se já há previsões no sentido de que as chuvas provavelmente ocorrerão em volume inferior às médias históricas, a questão é que a “área nua” que passou a ficar exposta em cada um dos reservatórios é muito maior do que o que já ocorreu em qualquer outro momento da história do Sistema Cantareira. No caso do Jaguari-Jacareí, esse elemento é especialmente preocupante, já que a situação dessa enorme represa já é essa há muitos meses (ao contrário do Cachoeira e do Atibainha, que esvaziaram mais recentemente). Com isso, o solo encontra-se muito mais rachado do que o que seria habitual – e, assim, o processo de impermeabilização a partir de chuvas contínuas é um feito muito mais difícil. Em outras palavras, esse contexto consideravelmente adverso poderá fazer com que mesmo que haja um volume relevante de chuvas, não tenhamos um incremento razoável do volume de água disponível.
Diferentemente de outras ocasiões, dependeríamos exclusivamente das chuvas nas cabeceiras dos rios para que as vazões de entrada subissem consideravelmente – e, ainda assim, parte dessas vazões também seria perdida diante desse solo excepcionalmente seco. Em síntese, a chance de que não tenhamos a recuperação sequer do volume correspondente à primeira cota do volume morto já pode ser admitida como não desprezível. É muito diferente termos uma estação chuvosa quando tínhamos, p.ex., apenas 4 km² de terra exposta (como a que ocorreu em 2009, e que levou as represas ao transbordamento), com a que provavelmente teremos agora (quando já há não menos do que 45 km² de área antes preenchida por água e que se encontra seca). Imaginem o quanto mais de chuva precisaria cair nessa região (ou o quão maiores precisariam ser as vazões dos rios que alimentam as represas) para que os volumes disponíveis efetivamente cresçam – de fato, e não matematicamente.
Trata-se de um contexto excepcionalmente adverso, que não poderia ter sido permitido pelo governo e pela Sabesp. Ao retirarem água, continuamente, para além daquilo que entrava, foram tornando o processo de recuperação cada vez mais difícil, até o ponto atual, que já parece ser o do não retorno. Agora, ao buscarem extrair todo o líquido remanescente da maior represa (a Jaguari-Jacareí), farão com que a superação da crise possa vir a depender, no limiar, apenas da melhoria dos níveis de água do Cachoeira e do Atibainha ao longo da estação chuvosa. No entanto, essas duas represas, sozinhas, jamais poderão atender aos 20 milhões de habitantes para os quais foi construído o Cantareira. Mais cedo ou mais tarde (dias, semanas ou meses), não haverá para onde correr, já que o sistema, simplesmente, não contará mais com seu “coração” (o reservatório supracitado, responsável pela armazenagem hipotética de 82% do volume total do empreendimento).
É possível que Alckmin venha a querer alterar a estratégia comentada no começo do texto a partir do segundo turno das eleições. Ou seja, adotar o racionamento, contradizendo a promessa de campanha feita – baseada, conforme expliquei acima, no esgotamento completo e irreversível do Cantareira (algo possível, mas com repercussões negativamente históricas e dificilmente implementável a partir das disputas legais que necessariamente ocorrerão com os habitantes do PCJ). Vejo duas possibilidades para que isso ocorra, não necessariamente alternativas: 1) a saída de Dilma Pena, uma hipótese concreta a partir das declarações da própria presidenta da Sabesp (uma nota de uma coluna da Folha de ontem apontava para isso, a partir do próprio interesse dela, das repercussões negativas, para o tucanato, a partir de sua performance na CPI municipal e, ainda, da sua perda de comando, conforme declarações de assessor de Alckmin). A troca presidencial poderia funcionar como um argumento para que o Governador viesse a justificar a nova abordagem da crise, inclusive como forma de transmitir a responsabilidade pelo insucesso das medidas tomadas até agora à presidenta, ainda que de forma velada.
A outra possibilidade é mais complicada: 2) uma vitória de Aécio Neves no segundo turno das eleições presidenciais. Caso o PSDB volte ao poder, Alckmin teria uma janela de oportunidade para adotar as famigeradas medidas impopulares ainda antes da assunção do posto presidencial pelo Senador, de forma a tentar gerir o pouco que resta de água em 2015 sem transferir a responsabilidade pela crise para no nível federal. Se Dilma vencer, é provável que a União venha a se engajar mais ativamente na questão. Por outro lado, sem a Presidência da República, o partido do Governo Estadual não terá porque não compartilhar o ônus pelos problemas vigentes com a União. Se esta não pressionar Alckmin e a Sabesp, é possível que eles venham a continuar a adotar a perniciosa estratégia atual, até o momento em que a situação se tornar insustentável, demandando, intrinsecamente, uma atuação federal mais incisiva – o que dará vazão, mais uma vez, para um comportamento inimputável da administração paulista, que argumentativamente dirá que apenas seguia “determinações” feitas pelo nível federal até o eventual colapso hídrico. Trata-se de uma situação que, em algum momento, necessariamente envolverá a administração federal – o papel e a visão popular sobre ela dependerão de sua forma de atuação na crise (e, é claro, dos resultados eleitorais).
De todo modo, independentemente do cenário, os próximos meses serão bastante complicados. Estamos cada vez mais próximos da morte do Sistema Cantareira, de guerras pelos últimos bilhões de litros, de transformações dramáticas na vida da população, de impactos imensos na atividade econômica. Seria a hora de afastarmos as clivagens ideológicas em nome de soluções republicanas, mas vivemos exatamente o pior momento para isso. A cada dia que passa, mais tarde fica para a adoção de medidas de mitigação, mais dependentes ficamos da natureza, e mais radicais precisariam ser as ações para contornarmos a crise. O que vivemos na última semana foi uma pequena e modesta amostra do futuro inóspito que está por vir.