Jeosafá Fernandez: José Wilker, um caso especial de coragem
Morávamos em treze numa digna casa de madeira na então distante vila Ede, periferia de São Paulo, sem asfalto, sem água encanada e com esgoto correndo por valetas infectas que iam dar no córrego Maria Paula, e que hoje corre por sob as ruas asfaltadas, ainda recebendo o dejeto das casas, pois nem o estado nem a prefeitura se dignaram a resolver a "questã".
Por Jeosafá Fernandez Gonçalves*
Publicado 07/04/2014 15:19
Mas a "questã" não é essa. A "questã" é a primeira vez a que assisti a José Wilker.
Foi no início da década de 1970, e eu tinha ou 7 ou 8 anos de idade. A imprecisão se deve à distância no tempo e à minha pouca idade de então, que era regida não por anos, mas pelo sol e pela lua, pelas brincadeiras no quintal cheio de árvores e pelos bichos de criação que zanzavam o dia pelo terreiro. Além da pouca idade, eu era mirrado, magro e irritadiço, por causa de uma dor de garganta crônica que não me deixava comer nada, e que só sarou lá pela adolescência, quando enfim cresci de repente e cheguei aos 1,70 de hoje.
A televisão, comprada por meu pai em suaves prestações na falida rede lojas Pirâni, que foi para as cucuias no incêndio do edifício Andraus, no centro de São Paulo, era uma novidade: uma Philco 29 polegadas em preto e branco, com uma lâmina de vidro para proteger o telespectador da radiação.
Reunidos em torno da telinha num quarto que até a hora de dormir era sala de televisão coletiva, inclusive com presença de filhos de vizinhos – e às vezes os próprios pais, quando o capítulo da novela era crucial –, ríamos e chorávamos com nossos heróis, às vezes tão parecidos com a gente, como no caso de Irmãos Coragem.
Nunca esqueci de quando Wilker passou a existir para mim. Foi num caso especial em que um jovem professor, em sérios problemas financeiros, divide uma casa pobre com a esposa grávida. Sua pobreza era a nossa, sua mulher era nossa mãe, que saía de uma gravidez para entrar noutra, até completar os onze em que nos tornamos.
Nossa torcida era toda para que ele tivesse sucesso, pois, nesse caso, nós, cujo único caminho apontado por seu João e dona Maria para sairmos da vida difícil era o do estudo, poderíamos ter também. Não precisa dizer o quanto ele sofre sem dinheiro, com a gravidez avançada da jovem companheira, com os sucessivos "nãos" que recebe pela cara. E, a cada "não", ele e sua jovem esposa mais se parecem com nossos pais – e nós, com aquela criança prestes a entrar no mundo pela porta da miséria.
O enredo é simples, e não me recordo nem do nome, nem de detalhes importantes do caso especial exibido pela Globo. Pela pouca idade, nem me se me deu importante guardar o nome do diretor (pela linguagem e profundo humanismo, arrisco que foi Janet Clair ou de Dias Gomes, se é que Vianinha não se insinuou no circuito também).
Depois de muitas frustrações, o personagem interpretado por José Wilker acaba se inscrevendo num concurso público de docência, não sei se para o hoje Ensino Básico ou para o Superior, arrisco que foi para o Superior, pois se forma uma banca feroz que sabatina duramente o candidato.
Antes da sabatina, o personagem vive uma trajetória de dificuldades econômicas e de muitas tentativas de emprego frustradas, muito em função de sua escolha pessoal: dedicara-se apaixonadamente ao estudo de um tema específico: a vida e a história de Pedro Ivo, herói da Revolução Praieira (1848-50), em Pernambuco. O fato é que ele se prepara como um louco para esse exame, porém, apresenta-se arrasado à sabatina, pois, afinal das contas, a única coisa de que entende é Pedro Ivo e sua revolução libertária.
A cena decisiva do caso especial é quando uma banca de doutores de aparência terrível recebe o candidato para realizar a chamada oral. Nós, no quarto convertido em arquibancada de arena em que se jogam cristãos aos leões, uns sentados na larga cama de molas de meus pais, outros em cadeiras capengas, outros pelo chão, estávamos sentados na verdade na cadeira ocupada por um José Wilker de olhos abatidos pelo sono dos estudos e pelas olheiras dos perdedores.
O olhar severo dos doutores da banca, posicionados em patamar superior, fulminavam o coitado do José, que naquele momento era todo o Brasil pobre, trabalhador, mal nutrido e cheio de amarga esperança. Anos mais tarde, embrenhando-me por nossa história, identifiquei aquela cena com fotos de julgamentos de presos políticos. Quem escreveu e dirigiu aquele caso especial era muito inteligente, teve muita coragem e contou com a burrice da censura, ainda bem.
Na cena decisiva, o clímax é quando o presidente da banca sorteia o ponto para sabatinar o candidato, o temível assunto sobre o qual o torturado José Wilker terá de discorrer com exatidão, se quiser conquistar o sonhado emprego que abrirá uma janela de respiro para o sufoco da família, a dele e a nossa.
Não me lembro se após essa cena há mais alguma coisa de importante, mas é ela que está nos meus olhos até hoje: o presidente da banca anunciando o ponto e a câmera indo em close para o rosto sonado e infeliz do José, que arregala uns olhos marotos, felizes de assustar, e dá uma gargalhada que deixa a banca atônita e nós, empoleirados pelo quarto, em extremo êxtase: o ponto sorteado era… Pedro Ivo.
Na minha memória, o caso especial acaba aí, com os membros da banca se entreolhando confusos, mas alegres, despidos mesmo da severidade, e com o rosto jovem e fresco de Wilker congelado numa belíssima gargalhada que, no entanto, nos fez chorar.
*Jeosafá Fernandez Gonçalves é escritor e dirigente do PCdoB em São Paulo