Lei de anistia: direito, moral e justiça de transição
O debate da inclusão na lei de anistia dos chamados crimes "conexos" – a tortura, sequestro político, assassinato e desaparecimento de opositores da ditadura pelos agentes da repressão – é intenso. Este artigo analisa as relações entre direito, moral e justiça na avaliação daqueles crimes cometido por agentes do estado ao reprimir opositores políticos da ditadura.
Por Ângela Almeida*, especial para o Vermelho
Publicado 24/10/2013 21:13
Introdução
Punir ou perdoar os crimes, os excessos e as injustiças praticadas pelos agentes da ditadura militar? Temos aqui um problema conhecido como “justiça de transição”, que se assenta em um conjunto de medidas consideradas necessárias para a superação de períodos de graves violações a direitos humanos, ocorridas no bojo de conflitos armados (guerras civis) ou de regimes totalitários (ditaduras), especialmente: esclarecimento da verdade, mediante Comissões de Verdade e processos judiciais; realização da justiça (responsabilização dos violadores de direitos humanos); reparação de danos às vítimas; reforma dos serviços de segurança; e instituição de espaços de memória.
Em 2008, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil protocolou, no Supremo Tribunal Federal (STF), a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153 na qual questionava a anistia aos representantes do Estado (policiais e militares) que, durante a ditadura, praticaram atos de tortura. Ela contestava a validade do § 1.º do art. 1.º da Lei da Anistia (Lei n. 6683/79), que considera como conexos e igualmente perdoados os crimes “de qualquer natureza”, relacionados aos crimes políticos ou praticados por motivação política no período de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979 (diz a lei: Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares. § 1º – Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”).
O Conselho da OAB pediu ao STF uma interpretação mais clara desse trecho da lei de forma que a anistia concedida aos autores de crimes políticos e seus conexos (de qualquer natureza) não se estendesse aos crimes praticados por agentes públicos acusados de homicídio, desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e atentado violento ao pudor contra opositores do regime. Eram práticas comuns: o uso do pau de arara e da cadeira do dragão, a aplicação de choques elétricos, inclusive no pênis, nos seios e na vagina, os espancamentos e os abusos sexuais, perpetrados nos suspeitos de militância política ou seus familiares, inclusive crianças e adolescentes. Estima-se em 30.000 o número de pessoas presas ilegalmente e torturadas pelos órgãos da repressão no Brasil.
Em abril de 2010, o STF julgou, por maioria, improcedente a ADPF nº 153 (acórdão publicado em 6/8/2010), confirmando a “validade da lei da anistia”. Mas nesse mesmo ano, a Corte Interamericana de Direito Humanos, julgando o caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, condenou o Brasil pela sua inércia em perseguir os responsáveis pela ditadura e esclarecer acontecimentos durante o período, além de declarar a “invalidade da lei da anistia” no que diz respeito a beneficiar a criminalidade estatal. (O processo originou-se em 1995, pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional e pela Human Rights Watch/América, em nome de pessoas desaparecidas no contexto da Guerrilha do Araguaia e seus familiares. O governo brasileiro foi notificado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2008 do Relatório contendo diversas recomendações ao Estado. Tendo em vista que as informações sobre o cumprimento destas foram tidas como não satisfatórias, a demanda foi submetida à Corte).
Esses julgamentos reanimaram o debate acerca da postura esperada perante “leis injustas” e provocaram novas polêmicas. Alguns aplaudiram a postura da Corte Interamericana por ter posto a justiça acima do direito em vigor. Outros se mostraram mais céticos, considerando preferível perdoar. Argumentavam: como poderia o agente estatal que acatava ordens pensar que após uma mudança de regime seria punido por ter cumprido com suas obrigações legais? Outros, finalmente, formularam duras críticas contra a punição, sustentando que, quando há mudança de regime, os novos donos do poder querem simplesmente se vingar de seus adversários derrotados e aplicam uma “justiça do vencedor”, com o pretexto de que só eles criam e aplicam o verdadeiro direito, o direito justo.
Este artigo discute a rica e complexa temática da “justiça de transição”. Com efeito, o problema sobre perdoar ou punir os crimes, os excessos e as injustiças praticadas pelos agentes da ditadura militar permite refletir sobre uma questão de particular importância, analisada nas aulas da disciplina de Introdução ao Estudo do Direito e, com maior profundidade, nos cursos de Filosofia do Direito e Teoria do Direito. Trata-se da relação entre Direito, Justiça e Moral.
1. A relação entre moral e justiça
Em torno da definição da justiça e da moral se desenvolvem intermináveis debates. A maioria dos doutrinadores contemporâneos considera que a questão da justiça se confunde com a da moral.
A moral estabelece os comportamentos “justos”, isto é, adequados e aceitos em determinada sociedade. Ela impõe determinados padrões de comportamento, seguindo o critério do justo. Por sua vez, a pessoa que é moralmente correta deve fazer o justo adotando regras de comportamento conforme o ideal de justiça social. Em outras palavras, afirmam que a moral se identifica com a justiça porque nunca aquilo que é imoral pode ser considerado justo, nem aquilo que é visto como injusto pode ser considerado como moralmente correto.
Daí surge um dos maiores problemas da teoria e da filosofia do direito envolvendo as relações entre o comportamento legalmente imposto (ou permitido) e o comportamento que é considerado moralmente justo. O que deve acontecer quando uma norma jurídica se revela injusta, ou seja, quando essa norma contraria as opiniões da sociedade sobre o que é correto e adequado?
2. A relação entre justiça e direito
Muitas vezes constatamos um forte descompasso entre os mandamentos do legislador e a solução que é considerada justa pelo intérprete do direito e/ou pela maioria da população. Em primeiro lugar, esse descompasso pode ser devido a insuficiências do legislador. Isso ocorre quando o regulamento não se ajusta a um caso concreto ou quando a evolução social tornou insatisfatório o próprio regulamento. Em segundo lugar, o descompasso entre o legalmente imposto e aquilo que é considerado justo pode ser devido a uma legislação que protege os interesses políticos e econômicos de determinados grupos sociais, prejudicando a maioria da população. O mais conhecido exemplo é a legislação tributária, criticada por distribuir impostos de forma injusta. Essa crítica é pertinente, já que, no Brasil, os trabalhadores assalariados assumem a maior parte da carga tributária. Finalmente, o descompasso pode ser devido ao exercício do poder por governos autoritários que oprimem os direitos fundamentais da maioria. Esse é o caso das ditaduras do século XX, que causaram injustiças e discriminações por meio de leis e decisões administrativas.
Os problemas não terminam por aqui. Mesmo quando as decisões do legislador parecem justas e adequadas, encontramos na sociedade opiniões divergentes sobre o exato conteúdo das leis. Todos concordam, por exemplo, que o homicídio é um ato de extrema gravidade e que o legislador atuou corretamente quando o tipificou como crime hediondo (Lei 8072/90). Não há, entretanto, acordo geral sobre a pena adequada. Cada vez que a mídia noticia um homicídio grave, uma parte das autoridades políticas e dos cidadãos pede uma punição muito mais dura do que aquela prevista pela lei penal, existindo, inclusive, propostas de introduzir a prisão perpétua e a pena de morte, ambas vetadas no Brasil pela Constituição Federal (art. 5.º, XLVII).
Outras pessoas sustentam, ao contrário, que as penas criminais não resolvem os problemas sociais; infligem aos condenados inúteis sofrimentos, não ressocializam e, muitas vezes, o meio carcerário simplesmente introduz o condenado no mundo do crime. Por isso, sustenta-se que, mesmo em caso de crimes graves, seria necessário aplicar penas alternativas, priorizando a reeducação dos infratores, oferecer apoio às vítimas e, sobretudo, aplicar políticas sociais para diminuir a marginalização, que, em última instância, é o que propicia ações violentas e desesperadas.
Constatamos, assim, que em muitos casos o sentimento de justiça encontra-se em descompasso com as previsões legais. Vivemos em sociedades complexas, em que se constatam contínuos conflitos entre interesses e ideologias. É impossível encontrar soluções que satisfaçam a todos: mesmo a solução que é considerada justa pela maioria da população recebe, necessariamente, a crítica dos demais…
Isso não deve causar estranheza, já que as leis são editadas após negociação política e votação nas casas legislativas, existindo uma minoria que perde e, portanto, tem os interesses que representam prejudicados. O legislador deve sempre decidir. E decidir significa escolher entre opiniões contrárias, descontentando uma parte dos cidadãos. O verbo “decidir” provém do latim decido, que significa cortar. Quem decide toma uma posição definitiva no conflito de interesses e de opiniões. “Dá um corte” e põe um termo às controvérsias.
Nesse sentido, sempre haverá um descompasso entre o direito em vigor (direito positivo) e as opiniões de cada pessoa, grupo ou classe social sobre a justiça. O problema torna-se mais agudo quando a aplicação de uma lei não só desagrada a alguns, mas se revela claramente injusta ou inadequada com os valores morais de determinada sociedade.
O que fazer, por exemplo, quando uma lei editada sob um regime ditatorial anistia agentes públicos da responsabilidade pela prática de crimes de homicídio, desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e atentado violento ao pudor contra opositores do regime?
Diante desse problema os filósofos do direito adotam duas posições: alguns optam pela “tese da separação” entre o direito e a moral para declarar a validade da lei da anistia; outros consideram uma forte relação entre o direito e a moral para justificar a invalidade da lei da anistia no que diz respeito a beneficiar a criminalidade estatal, abraçando a “tese da conexão”.
3. A tese da separação
A “tese da separação” encontra-se nas abordagens positivistas. O positivismo jurídico afirma que o direito é um fenômeno normativo diferente das obrigações morais. Propõe que, quando o operador do direito interpreta as normas jurídicas, não deve levar em consideração as exigências morais. Ele deve interessar-se exclusivamente pelas normas que possuem validade dentro do sistema jurídico, fundamentando-se na Constituição e nas demais normas criadas pelas autoridades estatais. Em outras palavras, o direito em vigor deve ser aplicado de forma rígida, sem que o operador jurídico se deixe influenciar pela sua opinião ou mesmo pela opinião da maioria da sociedade sobre o correto, o justo e o adequado.
Para os partidários do positivismo jurídico, por maior que seja a repulsa a acontecimentos degradantes de violência física e moral que marcaram a ditadura militar no Brasil, não é possível sucumbir às próprias pré-compreensões morais, de modo a modificar a interpretação de que a anistia concedida pela Lei 6683/79 foi a mais ampla, geral e irrestrita possível – conforme se entendeu até então. Uma mudança de interpretação do texto normativo e a limitação da anistia apenas aos opositores do regime equivaleriam, em última análise, à modificação de sua própria hipótese de incidência, sendo destruída a segurança jurídica.
De acordo com este ponto de vista, a anistia é causa extintiva da punibilidade (art. 107 do Código Penal), destinada a produzir efeitos que, além de concretos e limitados no tempo, caracterizam-se como indeléveis. Considerando que entre a edição da Lei nº 6683/79 e a promulgação da nova ordem constitucional (1988) transcorreram praticamente dez anos, propõe ser certo que a anistia, tal como concedida pelo diploma legal, ou seja, de forma inegavelmente ampla, produziu todos os seus efeitos (fato consumado), consolidando a situação jurídica de todos aqueles que se viram envolvidos com o regime militar, quer em razão de oposição, quer por atos de repressão.
O desfazimento da situação jurídica existente quando da inauguração da nova ordem constitucional esbarra no princípio da segurança jurídica, próprio ao Estado Democrático de Direito e garantido pela própria Carta de 1988. Embora o texto constitucional vede a concessão de anistia a determinados crimes em seu art. 5º, inciso XLIII, ele não confere, de modo expresso (e especificamente em relação aos agraciados pela Lei nº 6683/79), eficácia retroativa a tal norma.
A disposição do inciso XL, do art. 5º, da Constituição, consagra, por certo, princípio destinado a resguardar a incolumidade das situações jurídicas definitivamente consolidadas. O princípio da não retroatividade das leis tem por fundamento a necessidade da segurança jurídica, da estabilidade do direito.
Para finalizar, os positivistas pensam que, quando o direito se revela injusto ou inadequado, a solução está na sensibilização do legislador e na luta política para que sejam reformadas ou abolidas as leis injustas ou inadequadas. O STF não está autorizado a reescrever leis de anistia. Nem mesmo para reparar flagrantes iniquidades ele pode avançar sobre a competência constitucional do Poder Legislativo.
4. A tese da conexão
Seus partidários entendem que o operador do direito deve harmonizar as normas jurídicas com os preceitos morais, já que a finalidade do sistema jurídico é encontrar em cada caso uma solução justa e aceita pelos membros da sociedade.
Segundo essa visão, o direito não é simplesmente um conjunto de normas criadas pelo legislador, mas integra os mandamentos morais aceitos pela sociedade.
Para os defensores da tese da conexão, o que está em jogo na questão da anistia é a adequação de um perdão criminal que possa ser dado pelo Estado a seus agentes que violaram direitos fundamentais do cidadão, ou seja, o valor jurídico de uma autoanistia, diante do preceito fundamental da preservação da dignidade da pessoa humana e de repulsa absoluta à tortura e ao assassinato político. Nem mesmo a alegação de prática do terrorismo pelos dissidentes do regime poderia dar suporte às condutas dos agentes do Estado de torturar, sequestrar e assassinar esses militantes ou quaisquer outros suspeitos.
As autoanistias são artifícios de impunidade, mediante os quais os perpetradores de violações aos direitos humanos se concedem imunidade penal pelos atos que cometeram. Ora, é evidente que ao próprio regime que pratica – ou praticava – a violação não cabe uma iniciativa de se autoperdoar, afirma essa corrente. Ainda que o Estado autoritário tenha perdoado alguns delitos dos opositores políticos, isso não o investia de competência para conceder igual benefício aos seus agentes. As situações jurídicas e o desvalor das condutas de uns e de outros são flagrantemente distintos.
Ademais, importa lembrar que a Lei da Anistia não é fruto de um Estado democrático. Na data em que foi editada o país ainda estava sob o regime ditatorial. O Congresso Nacional estava mutilado pelas cassações e vivia sob a ameaça do recesso por ordem presidencial, conforme ocorrera apenas dois anos antes (“Pacote” de Abril de 1977 – Ato complementar nº 102). Por força da Emenda Constitucional nº 8, também de 1977, houvera eleição indireta para o Senado Federal, com a introdução da figura popularmente apelidada de “senador biônico”. Daí que um terço dessa Casa legislativa fosse composto por apadrinhados do governo.
A Lei da Anistia foi um ato normativo produzido formalmente pelo Congresso, mas eivado pelo vício material do regime autoritário. Não se pode afirmar que foi fruto de um pacto político democrático. Não existia correlação de forças no Congresso Nacional favorável a um pacto desse tipo, nem tampouco liberdade política e civil para a formação de um debate legítimo e um acordo de vontades.
Embora o início do processo de anistia tenha sido fruto de pressão popular – capitaneado, sobretudo, por mulheres – e dos familiares de perseguidos políticos, é indiscutível que a Lei da Anistia foi um “produto” unilateral e exclusivo do governo militar. A sociedade não tinha nem voz nem voto suficiente no Congresso Nacional. A iniciativa do projeto de lei era, ademais, privativa da presidência militar da República, que poderia a qualquer momento retirá-lo do parlamento.
Naquela época, não havia mais nenhuma organização de militância política dissidente em atuação. Todos os grupos haviam sido desmobilizados ou aniquilados pela repressão. A última operação sangrenta dos órgãos de repressão política da ditadura militar ocorreu em dezembro de 1976, em São Paulo, quando agentes do Exército assassinaram três dirigentes do então clandestino Partido Comunista do Brasil (PCdoB). O episódio ficou conhecido como “Massacre da Lapa” (ou “Chacina da Lapa”), porque o desfecho da operação foi o ataque a tiros, na manhã de 16 de dezembro, a casa nº 767, da Rua Pio XI, no Bairro da Lapa, onde o comitê central do PCdoB reunira-se entre 11 e 15 de dezembro de 1976.
A concessão da anistia aos agentes do Estado, na forma dissimulada no § 1º do art. 1º da Lei nº 6683/79, foi desde o princípio uma exigência dos ditadores militares. Sem a possibilidade de repudiar a bilateralidade, a sociedade civil centrou seus esforços na tentativa de ampliar a anistia aos réus condenados pelos chamados crimes de sangue, mediante a supressão do § 2º do art. 1º da lei, o que tampouco se conseguiu.
Não é legítimo, pois, alegar a existência de um acordo ou compromisso histórico quando sabidamente o que houve foi uma imposição prévia e inelutável por parte dos detentores do poder de que qualquer Lei de Anistia deveria garantir proteção aos agentes do Estado.
A sociedade civil não “pactuou” a anistia bilateral. Ela “engoliu” a exigência do governo militar, que possuía, na tradicional expressão popular, “a faca e o queijo na mão”.
5. A Comissão Nacional da Verdade
É corolário do ideal de democracia o direito à justiça e à verdade. Nesse sentido, consolidou-se a figura da “justiça de transição”, que representa um acerto de contas com o passado, evitando que fantasmas possam ressurgir e prejudicar o futuro, além do que pretende impedir a proliferação de uma cultura de impunidade, alicerce de práticas (que permanecem) contrárias aos direitos humanos.
Em vista do julgamento da ADPF nº 153, as expectativas hoje, no Brasil, no sentido de promover a justiça de transição, se concentram na Comissão Nacional da Verdade, criada pela Lei nº 12528, de 18 de novembro de 2011. Ela tem como finalidade examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988. Entretanto, não possui qualquer espécie de poder punitivo, persecutório ou julgador.
Cabe à Comissão Nacional da Verdade analisar os casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres, ainda que ocorridos no exterior. Cabe a ela também identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionadas à prática de violações dos direitos humanos, assim como suas eventuais ramificações nos aparelhos estatais e na sociedade. Deverá, ainda, encaminhar aos órgãos públicos competentes todas as informações que possam auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais dos desaparecidos políticos do período.
Os seus integrantes devem ter acesso a todos os arquivos do Poder Público sobre o período, podendo convocar vítimas ou acusados de violações para depoimento, ainda que essa convocação não tenha caráter obrigatório. Ao fim de dois anos, contados da data de sua instalação, a Comissão deverá apresentar um relatório circunstanciado contendo as atividades realizadas, os fatos examinados, as conclusões e recomendações.
6. Considerações finais
Toda a pauta axiológica da Constituição aponta para a impossibilidade de serem criados ou mantidos obstáculos normativos ou materiais para a investigação e responsabilização de graves crimes atentatórios dos direitos humanos. A tortura, o tratamento desumano e degradante, o crime hediondo e a ação de grupos armados civis ou militares contra a ordem constitucional e o Estado democrático mereceram reprovação expressa e extraordinária na Constituição Federal (art. 5.º, III, XLIII, XLIV), carecendo os poderes constituídos de competência para garantir-lhes impunidade.
Alguns países, a exemplo do Uruguai, realizaram plebiscito para consultar a população sobre a abolição da Lei de Anistia. Esta é uma hipótese prevista em nossa Constituição Federal (art. 14, I) que pode ser considerada logo após a publicação do relatório da Comissão Nacional da Verdade, permitindo que a própria sociedade decida sobre perdoar ou punir os crimes praticados contra os direitos humanos durante o regime militar.
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(*) Este artigo foi editado por José Carlos Ruy com base em um trabalho apresentado pela autora no I Congresso Internacional de Direitos Humanos (2012), promovido pela Universidade de Caxias do Sul, Procuradoria Geral do Estado do RS e pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos no RS.
Ângela Almeida é Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul, RS; doutoranda em Letras pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) e Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter), RS; e colaboradora do Vermelho.