Eles eram muitos cavalos

Considerado pelo jornal O Globo como um dos mais importantes romances da década, vencedor dos prêmios Machado de Assis e APCA, lançado em Portugal, França, Itália, Alemanha, Argentina e Colômbia, Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, está na 11ª edição (revista e definitiva), que será lançada no fim deste mês pela Cia das Letras. PPeA publica um trecho do livro, Confiram!

Por Luiz Ruffato

Eles eram muitos cavalos

45. Vista parcial da cidade

são paulo relâmpagos
(são paulo é o lá-fora? é o aqui-dentro?)
de pé a paisagem que murcha
a velha rente à janela

             rosto rugas bolsa de náilon desmaiada no colo dentro coisas enroladas em jornais vestido branco bolinhas pretas sandália de plástico fustigando o joanete cabelos grisalhos olhos assustados nunca se acostumará ao trânsito à correria ao barulho a corda canta na roldana o balde traz água salobra pouca o silêncio das vacas mugindo a secura crestada entre os dedos do pé

a adolescente rente ao corredor

             madorna desordenados fascículos de cursinho pré-vestibular derramam-se pelos braços vez em vez escorrega para os lados da velha sobressaltada se desculpa

(ajeita-se ainda mais para o canto)  
 
              tenta impossíveis olhos abertos acorda cedo meio-expediente no balcão de uma agência de viagens o cursinho fim de tarde volta hora e meia de ônibus a mãe pergunta minha filha tanto sacrifício vale a pena?
e migalhas de seus sonhos esparramam-se sobre os ombros da velha
de pé atrás um homem mão enganchada na alça
 
             mão enganchada na bolsa (uniforme, marmita, escova e pasta de dente, pente, um gibi) pendula o corpanzil pálpebras semifechadas (semi-abertas?) cansado suado contas para pagar prestações atrasadas o corpo
para a frente
e

para trás

outro ferrabrás poucos amigos
tenta adivinhar a toda hora aonde
abaixa-se o rosto entre braços e sovacos
tenta reconhecer aonde
neófito
nós dormimos roncamos até
quando se aproxima o ponto uma campainha soa dentro da cabeça súbito aperta o botão
 

sacolejando pela Avenida Rebouças

o farol abre e fecha
carros e carros
mendigos vendedores meninos meninas
carros e carros
assaltantes ladrões prostitutas traficantes
carros e carros
mais um dia
terça-feira
fim de semana longe
as luzes dos postes dos carros dos painéis eletrônicos dos ônibus
e tudo tem a cor cansada

e os corpos mais cansados

mais cansados
 
a batata das minhas pernas dói minha cabeça dói e