Emir Sader: A América Latina não podia dar certo
A América Latina não podia dar certo. Foi criada pelos colonizadores para não dar certo, para ser eternamente subalterna ao mundo “civilizado”. Para entregar-lhe suas matérias-primas e sua força de trabalho superexplorada e honrar seus senhores europeus. A América Latina foi colonizada para ser colônia e se sentir colonizada, para se subordinar às metrópoles e ao Império.
Por Emir Sader*, em seu blog
Publicado 21/09/2013 16:38
Mais ainda quando as alternativas pareciam desaparecer, só restaria à América Latina imitar, de forma mecânica, o modelo único consagrado pelo centro do capitalismo. E assim foi por um tempo. A América Latina foi o continente com mais governos neoliberais e em suas modalidades mais radicais.
Uma devastadora onda, que liquidou, entre outros, o Estado social chileno, a autossuficiência energética da Argentina, além de deixar o continente como uma região intrancendente no plano internacional, de baixo perfil, subordinada às potências do centro do sistema, intensificando ainda mais a desigualdade e a miséria entre nós.
De repente, o fracasso dos governos neoliberais gerou a eleição de uma série de governos que se elegeram com o compromisso de superar esse modelo e de construir sociedades mais justas, menos desiguais, soberanas no plano internacional.
Foi assim como a região se tornou a única no mundo com governos antineoliberais, que, além disso, passaram a construir processos de integração regional autônomos em relação aos EUA. Mesmo quando surgiu a profunda e prolongada crise econômica – que acabou de cumprir cinco anos de duração – nos países do centro do capitalismo, esses países não deixaram de expandir suas economias e, sobretudo, de combater a miséria e a desigualdade.
Entre seus adversários – na direita e na ultra esquerda –, inicialmente esse fenômeno gerou desconcerto. Não era possível que, com a recessão mundial – que sempre havia arrastrado todos os nossos países à estagnação e ao retrocesso –, países como a Argentina, o Brasil, a Bolívia, o Uruguai, o Equador, a Venezuela resistissem à crise.
Depois de ter denunciado esses governos como propagadores de ilusões, tiveram que aceitar que nossa situação é distinta à dos países do centro do sistema e da daqueles, na região, cujos governos mantem orientações neoliberais. Já’ não podiam dizer que as situações favoráveis dos nossos países se deviam a um marco internacional favorável, porque esse marco tinha mudado radicalmente com a crise.
Havia os que fechavam os olhos aos grandes avanços sociais de países do continente mais desigual do mundo, querendo desqualificar as orientações desses governos, que consideram modelos exportadores baseados na devastação dos recursos naturais. Como resultado, todos os que propugnam essas posições foram rejeitados pelos povos desses países, que os reduziram a forças sem nenhum apoio popular, sem nenhuma expressão política.
As aves de rapina seguiam esperando indícios de problemas, que pudessem – mesmo depois de uma década de sucesso das políticas pós-neoliberais desses governos – comprovar suas funestas previsões. Formou-se uma coalizão internacional entre forças de direita e de ultra esquerda para atacar os governos progressistas da América Latina, porque o sucesso de líderes como Hugo Chávez, Lula, Dilma, Nestor e Cristina Kirchner, Evo Morales, Rafael Correa, Pepe Mujica, entre outros, tornava insustentáveis suas posições.
Bastava surgir problemas em alguns desses países, qualquer que fosse sua origem – mesmo as pressões recessivas continuadas vindas do centro do sistema – para que se renovassem os artigos na imprensa ou as previsões de opositores sem nenhum apoio popular, dizendo que finalmente se esgotava o modelo alternativo de crescimento com distribuição de renda desses governos.
Porque é insustentável para eles que Carlos Andrés Peres, Ação Democrática e Coppei fracassassem, e Hugo Chávez desse certo. Que FHC tivesse fracassado e Lula desse certo. Que seus queridos Carlos Menem e Fernando de la Rua tivessem fracassado espetacularmente, enquanto Nestor e Cristina tenham dado certo. Que Sanchez de Losada tivesse sido expulso do governo pelo povo e Evo Morales dê certo. Que os governos de direita no Uruguai tenham fracassado e os da Frente Ampla tenham sucesso. Que o mesmo aconteça com o sucesso de Rafael Correa e o fracasso dos governos de direita que o antecederam.
Já não são governo efêmeros, todos já conseguiram reeleger-se e/ou elegeram seus sucessores e continuam tendo possibilidades de seguir governando ou de eleger seus sucessores, promovendo uma segunda década pós-neoliberal na América Latina
No entanto, segundo o receituário neoliberal e o da ultra esquerda, esses governos não podiam dar certo. Tinham que fracassar para comprovar a realidade do “pensamento único” e do Consenso de Washington. Ou a realidade dos dogmas extraídos dos livros diretamente para a realidade, de que governos populares de ampla aliança política não podiam se consolidar e obter grande e renovado apoio popular, transformando de maneira democrática a realidade. Porque seriam dirigidos por líderes que teriam “traído” a confiança popular, em condições que, na realidade, os povos os escolheram e reafirmaram como seus líderes.
Esta situação se consolidou de tal forma que as oposições em cada país não encontram espaço – nem lideranças, nem plataformas alternativas. Ou calam sobre o que fariam, caso triunfassem, ou confessam que voltariam às fracassadas formulas neoliberais – menos Estado, duro ajuste fiscal, privatizações, política externa de retorno à subordinação aos EUA.
Porque os governos pós-neoliberais se tornaram hegemônicos em cada um dos países que governam. Daí sua legitimidade e sua capacidade de enfrentamento dos problemas que têm pela frente, assim como sua capacidade de renovação para dar continuidade a seus programas de prioridade das políticas sociais, dos processos de integração regional e do papel do Estado como indutor do crescimento econômico e garantia dos direitos sociais de todos. Negando a todos que acreditavam que a América Latina não podia dar certo.
*Emir Sader é sociólogo, mestre em filosofia política e doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP)