Lá como cá: histórias de repressão à sensualidade feminina
Divulgada nesta sexta (18), a notícia de que a Arábia Saudita estuda banir olhar “sexy” com véu — lei que obrigaria mulheres já cobertas de negro dos pés à cabeça a encobrirem o último vestígio de beleza –, demonstra quão atual e necessária é a luta da libanesa Joumana Haddad, que está no Brasil relançando nesta noite (18) o livro “Eu matei Sherazade, confissões de uma árabe enfurecida”, da Editora Record.
Por Christiane Marcondes
Publicado 18/11/2011 16:37
A sensível e contundente narrativa recorre ao melhor da literatura mundial para ilustrar a quase intransponível desigualdade de gênero. Reproduz, a esse propósito, frase do filósofo francês Michel Onfray, que escreveu em “A potência de existir”: “Quando a literatura produzir a contrapartida de uma mulher Casanova, e quando esse nome se tornar uma definição positiva da pessoa retratada, então, e só então, poderemos falar de uma paridade real entre homem e mulher”.
Poeta premiada, editora do principal jornal libanês, o An-Nahar, e criadora da primeira revista literária erótica do mundo árabe — a Jasad (corpo, em árabe), Joumana explica o francês: “Não acredito que Onfray quisesse dizer com isso que, a fim de se tornarem iguais aos homens, as mulheres precisam viver sua sexualidade de uma forma banal como fazia o pobre Casanova. A solução não é, com certeza, as mulheres caírem na armadilha de trocar a qualidade pela quantidade. É evidente que ele estava falando das diferentes conotações que uma descrição pode ter e transmitir se levarmos em conta as discriminações de gênero”.
O “casamento chique” que roubou a infância
Uma das mais engajadas representantes da luta pela liberdade feminina no Oriente Médio, Joumana Haddad tem uma vida marcada pelo constante desafio às ideias preconcebidas que o Ocidente tem das mulheres no Oriente Médio. E em seu livro “Eu Matei Sherazade”, não é diferente: Haddad desmonta o mito do clássico da literatura árabe, o qual acusa de passar uma mensagem equivocada às mulheres. Em suas noites de histórias inventadas para evitar a morte, Sherazade não seria um exemplo de resistência e rebelião, mas de concessão e negociação de seus direitos básicos. É com esta premissa que a autora tece um relato franco e explosivo sobre o que significa ser uma mulher árabe nos dias de hoje, condenando a postura daquelas que assumem o papel de vítima.
No livro, Joumana faz críticas também à guerra, que descobriu com apenas quatro anos e meio, no chamado “domingo negro”, quando explodiu a guerra civil em Beirute. As rajadas de tiro e as explosões, ao longe, soaram como a comemoração de um “casamento chique” para sua mãe, que estava e continuou preparando um bolo para a família. Longe disso, nas palavras da escritora, “era uma guerra que consumiu os melhores anos da minha infância e adolescência. Uma guerra que destruiu casas, lares, famílias e se tornou uma fábrica de viúvas e órfãos.”
A libanesa analisa o papel da mulher nesse cenário bélico e conclui que a violência é um dos fatores que reprimem a consciência feminina sobre liberdade: “Guerra é coisa de homem, dizem. Conclui-se daí que perder entes queridos seja coisa de mulher, suponho. Quanto mais serena, mais concentrada em suas lutas pessoais não seria a mulher árabe de hoje se não tivesse sido obrigada, em tantos países, a exercer o papel de viúva ou órfã, de mãe ou irmã enlutada.”
Um cúmplice na estante
A literatura foi uma grande aliada da menina, que estudou mais de 10 anos em escola feminina, sendo reprimida não só dentro de casa como entre os muros da escola e nas ruas de Beirute. Ela mesma relata: “Nem o conservadorismo dos meus pais, nem meu ambiente escolar – denunciei ambos e lutei contra eles só por uma questão de princípio – me irritavam de fato porque, até chegar à vida adulta, eu estava completa e absolutamente extasiada com o mundo dos livros e da escrita. Portanto, apesar da criação tradicional e do peso do medo, cresci livre por dentro, minhas leituras me emanciparam – e a liberdade, como mais tarde descobri, começa na cabeça antes de chegar à expressão e às atitudes de uma pessoa”.
Joumana conta que foi uma menina “levada” e que aguardava os pais saírem de casa para subir num banquinho e alcançar com braços esticados os livros das prateleiras mais altas da biblioteca doméstica. Assim chegou ao Marquês de Sade, Victor Hugo e, mais tarde, a Georges Bataille, que a ajudou a formular uma das bandeiras existenciais que a movem como poeta e jornalista. Bataille defende que só há duas opções: “ou a palavra exaure o erotismo ou o erotismo exaure a palavra”.
Com essa idéia em mente, a escritora compartilha a experiência: “Por que erotismo? Por que o corpo? São perguntas que me fazem com freqüência. E minha única resposta a elas é outra pergunta: são os escritores que escolhem os temas ou são os temas que os escolhem? Eu, pessoalmente, estou convencida de que a segunda é a resposta certa”.
Se Joumana bebeu na fonte da literatura ocidental para embasar sua prosa e poesia, do mesmo modo hoje, escritores consagrados da literatura ocidental saúdam sua estréia nas letras: “Um livro corajoso sobre uma mulher no mundo árabe. Ele abre nossos olhos, destrói preconceitos e é muito divertido”. Assina: Mario Vargas Llosa.