Comparato: direitos humanos no Brasil, por dentro e por fora
No conto O Espelho, de Machado de Assis, o narrador assevera a seus ouvintes espantados que cada um de nós possui duas almas. Uma exterior, que exibimos aos outros, e pela qual nos julgamos a nós mesmos, de fora para dentro. Outra interior, raramente exposta aos olhares externos, com a qual julgamos o mundo e a nós mesmos, de dentro para fora.
Por Fábio Konder Comparato*, na Caros Amigos
Publicado 09/04/2011 19:27
Penso que essa alegoria explica perfeitamente a diplopia ou dupla visão dos nossos grupos dominantes diante da questão dos direitos humanos. A alma exterior dessas falsas elites, exibida ao mundo, sustenta que neste país todos, sejam eles ricos ou pobres, poderosos ou humildes, têm seus direitos igualmente respeitados. Mas a alma interior repele com desprezo esse igualitarismo absurdo.
Afinal, como bem sentenciava Napoleão – não o imperador dos franceses, mas o líder suíno da rebelião dos animais na famosa novela de George Orwell – se todos, em princípio, são iguais entre si, alguns acabam sendo mais iguais do que os outros.
Dois episódios históricos ilustram à perfeição esse aspecto deplorável dos nossos costumes políticos. O primeiro deles foi a refinada hipocrisia das autoridades públicas (nelas incluído o clero católico, pois a Igreja era aliada ao Estado) a respeito do tráfico negreiro, durante a primeira metade do período imperial.
Em 1826, firmamos com a Inglaterra uma convenção, pela qual o tráfico de africanos que se fizesse depois de três anos da troca de ratificações seria equiparado à pirataria. Para cumprimento desse tratado internacional, promulgamos a Lei de 7 de novembro de 1831, a qual determinou que, a partir de então, todo africano desembarcado no Brasil seria considerado livre.
Essa lei, porém, permaneceu letra morta, pois fora editada unicamente “para inglês ver”. Os traficantes de carne humana tornaram-se os mais poderosos empresários do Império. Como lembrou o grande advogado negro Luiz Gama, ele próprio vendido como escravo pelo pai quando tinha apenas 10 anos, “os carregamentos eram desembarcados publicamente, em pontos escolhidos das costas do Brasil, diante das fortalezas, à vista da polícia, sem recato nem mistério. Eram os africanos, sem embaraço algum, levados pelas estradas, vendidos nas povoações, nas fazendas, e batizados como escravos pelos reverendos, pelos escrupulosos párocos!”
Diante desse comportamento indigno das autoridades brasileiras, e tendo em vista a iminente expiração do tratado de 1826, o Parlamento britânico votou em 1845 o bill Aberdeen, pelo qual, reiterando-se a qualificação do tráfico negreiro como pirataria, foi autorizado o apresamento, até mesmo em águas brasileiras, dos tumbeiros e de sua carga, com o julgamento da tripulação pelas Cortes do Almirantado em Londres.
Viu-se, portanto, o governo imperial constrangido a abandonar sua política de vistas grossas em relação ao comércio de seres humanos. Levou, porém, um lustro até fazer votar, em 4 de outubro de 1850, e aplicar efetivamente, a Lei Eusébio de Queiroz, que impunha o julgamento dos traficantes e compradores de africanos como contrabandistas.
Pois bem, vivemos agora um episódio análogo. Durante a maior parte do regime militar, uma política de Estado efetivamente aplicada, embora nunca oficialmente reconhecida – como sempre, a alma exterior desmentindo a alma interior – consistiu em torturar e assassinar (com ou sem ocultamento, ou mutilação do cadáver), os principais opositores políticos, mesmo quando já recolhidos à prisão.
Em 1979, na esteira de outras ditaduras do hemisfério, decidiram os chefes militares, como condição para se afastarem do poder, impingir ao Congresso Nacional uma lei de anistia, aparentemente dirigida aos perseguidos pelo regime, mas na verdade e principalmente para garantir a total impunidade dos agentes de Estado, militares ou civis, que haviam ordenado e executado aqueles crimes hediondos. Em suma, uma autoanistia.
Em 2009, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ingressou com uma demanda perante o Supremo Tribunal Federal, pleiteando a interpretação dessa lei de anistia, à luz não só da Constituição de 1988, mas ainda dos princípios e tratados de direito internacional. Com efeito, o art. 5º, inciso XLIII da Constituição declara imprescritível e insuscetível de anistia o crime de tortura; e qualquer bacharel aprovado em concurso de ingresso à magistratura sabe que a entrada em vigor de uma nova Constituição revoga, de pleno direito, as leis anteriores com ela incompatíveis.
Por outro lado, desde o final da Segunda Guerra Mundial, com os julgamentos de Nuremberg dos criminosos nazistas, fixou-se no direito internacional o princípio fundamental de que os atos de terrorismo de Estado (como os praticados durante o nosso regime militar) são crimes contra a humanidade e, como tais, não sujeitos à prescrição nem à anistia.
A demanda proposta pela OAB perante o Supremo Tribunal foi, lamentavelmente, julgada improcedente. A Procuradoria-Geral da República e alguns julgadores chegaram, sem ironia, a afirmar que a anistia dos mandantes e executores de crimes de Estado, durante o período de exceção, fora um “acordo histórico”, graças ao qual havíamos ingressado, triunfalmente, no regime democrático.
Sucedeu que em novembro do ano passado, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao julgar a atuação de nossos capitães do mato na repressão da chamada “guerrilha do Araguaia”, condenou o Brasil por unanimidade pela prática de graves violações de direitos humanos. Além da abertura total dos arquivos militares e da reparação dos danos, físicos e morais, sofridos pelas vítimas sobreviventes daquela chacina e pelos familiares dos mortos, a sentença determinou:
>> Que o Estado brasileiro realize “um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional”, a respeito dos crimes praticados por seus agentes durante a chamada “Guerrilha do Araguaia”, em presença de altas autoridades nacionais e das vítimas.
>> Que o Estado brasileiro “deve implementar, em um prazo razoável, um programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos, dirigido a todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas”.
>> Que “o Estado deve adotar, em prazo razoável, as medidas que sejam necessárias para tipificar o delito de desaparecimento forçado de pessoas, em conformidade com os parâmetros internacionais”.
Nunca é demais lembrar que, no livre exercício de sua soberania internacional, o Brasil aderiu solenemente à Convenção Americana de Direitos Humanos em 1992, e reconheceu a jurisdição da Corte Interamericana em 1998. Ora, o art. 68 da Convenção determina que os Estados por ela vinculados “comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes”.
No entanto, passados mais de quatro meses da prolação da sentença condenatória no caso, as autoridades brasileiras ainda continuam a fazer de conta que o assunto não é com elas. Até mesmo as publicações do decisório, ordenadas pela Corte, não foram feitas. Ou seja, seguindo o precedente da criminosa condescendência com o tráfico negreiro no século XIX, e o nosso tradicional jogo duplo em matéria de direitos humanos, o Estado brasileiro não repele a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, mas tampouco a executa.
Diante disso, o Conselho Federal da OAB ingressou recentemente com uma petição, no processo acima referido sobre a interpretação da lei de anistia, pleiteando que o Supremo Tribunal Federal decida, claramente e sem rebuços – ou seja, fazendo coincidir o juízo da alma interior com o da alma exterior – qual das posições da seguinte inescapável alternativa o Estado brasileiro deve tomar:
>> Ou tornar-se-á um Estado fora-da-lei no plano internacional.
* Fábio Konder Comparato, jurista, é professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e doutor honoris Causa da Universidade de Coimbra