Marco Albertim: Ela tinha alergia à lama do Capibaribe
Era dura a vida e a luta dos militantes clandestinos na época da ditadura militar (1964-1985). Seus protagonistas não eram, entretanto, figuras míticas. Eram gente de carne, osso, sentimentos, sonhos e desejos. Em meio ao debate de concepções revolucionárias, da luta por um ideal de sociedade e da organização de ações audazes, os militantes viviam, amavam, sofriam, integrantes que eram da eterna saga humana em busca da felicidade. Um belo conto do escritor pernambucano Marco Albertim.
Publicado 17/12/2010 15:09
I
Silêncio!
A polícia vasculhara o Morumbi à cata de uma loura, então em agitação de rua, e de família grã-fina. Tinham seu retrato. No hospital, não trocara confidências com parceiros ocultos; urdira uma fuga como um enredo de folhetim; aconteceu.
Agora, espiando com estranheza a lama do Capibaribe, sorve o ar impuro e sente um leve prurido nas pernas. Tem dúvidas se seu retrato não fora espalhado. Os jornais não dão conta de uma loura que deixara a polícia de São Paulo confusa. Ela não mudou a identidade; só o rosto, agora polvilhado de cosméticos.
A lama do rio dá vazão a uma paranoia no meio de estranhos. Ela esconde dos novos parelhos a impressão de cilada iminente; mas integra-se logo, conforme seu pragmatismo veloz. Se lhes ordenar uma invasão a um posto de polícia, não hesitarão se pôr-se à frente. Põem-se de ouvidos, todos, esmolando uma palavra de suas frases sem lesões.
A reunião se deu num sítio isolado. Chegaram à noite. Ela deitou-se sem pijama, com a calcinha, cobrindo-se dos pés à cabeça; no mesmo quarto onde Raquel se deitara e tinha o costume de dormir. Durante o dia, inquire os sitiantes sobre o dia a dia de cada um. Não é insone, deixa-se velar por operários em motins. Fantasmas vivos. Distingue-os de dia, examinando suas feições; resgata-os nos sonhos.
Ingrid apareceu na porta, quando os outros conversavam nos fundos do quintal. Enrolada num lençol branco, cabelos soltos, fadiga nos olhos. Fala-lhes baixo, com autoridade. Apreciam-lhe o discurso; bebem como um unguento noturno, seu juízo sem tropeços.
– Raquel me disse que não é comum por aqui, reunião de madrugada. A luz pode chamar atenção. Vocês devem entrar para dormir.
Horácio tem caderno e caneta, anotando frases, gestos, o que lhe parece útil para escrevinhar contos.
– Estamos discutindo linguística. Poderá a revolução fazer da língua, o que fará com a socialização dos meios de produção!? Quero dizer: a língua será posta num tubo de ensaio para ser objeto de experiências?
Ela não responde. Antes que sumisse dentro da casa, ele insiste:
– Ingrid! Seu nome não é nada brasileiro!
Ela volta-se.
– Eu sou internacionalista! Meus costumes são tupiniquins!
– Pode ser uma bela resposta para um nacionalista que se esconde no tronco dos tupis. A resposta não saiu de Horácio; de Miguel, até ali calado, à cata de um mote, de uma moita para dar o bote.
– Tenho prática de nacionalista?
Perguntou chispando nos olhos de Miguel; chispando para tirar dali as vísceras do provocador.
– Não. Mas nenhum credo nasce inteiro. Surge potencialmente.
– Estou com sono. Não estou me evadindo da discussão. Temos uma pauta marcada para amanhã, ou mais tarde. Não demorem.
Não evitam, quando ela se vira para entrar, olhar o lençol fino por onde se vê o contorno de suas coxas, interrompido pelas nádegas. Demora dois minutos o transe.
Entra deixando um rastro de fêmea que não se deixa capturar na controvérsia. Larga-os confusos. Ilumina-os a luz rala na cumeeira. Conversam um pouco para não se dar por vencidos. Depois, ouvem-na. Não é sua voz conhecida. Ouvem-na austera, morto-viva.
– Silêeencio!…
Dormira para se reencontrar com seus duendes. Tinha conversação amistosa com eles; ouve-os reverente, animosa. Sonha com um ou com todos, gritando apoio ou rejeição. Um camponês urdira uma tocaia, tinha o seu apoio. Ouviu a voz de Miguel, que pusera em dúvida seu internacionalismo. Ordenou silêncio.
Entram. Suspeitam ser o ruído de estranhos a razão do gemido de Ingrid. Horácio adverte: – Ela não está dormindo, está pondo em ordem a crítica ao nosso comportamento irresponsável.
– Com razão – rende-se Miguel.
– Podemos dormir em paz porque estamos sob a tutela de Ingrid. – Alfredo, com a lente grossa dos óculos, ocultando a cobiça de ser capturado pelo sonho de Ingrid. Sente-se figurante dos enredos dela.
Operários de todo o mundo…
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Morro de Água Fria, Recife |
Pulou feito um saltimbanco
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Casario no bairro de Casa Amarela, no Recife |
– Devia exercitar a escrita, nossa orácula… Onde aprendeu a escrever assim? Com egípcios, no fundo de uma pirâmide.
Toda a noite acordados, imprimindo cinco mil cópias da folha volante.
– Teremos cinco mil votos nulos e duas tendinites – azeda-se Horácio.
– Tendinite aleija. Não vou ficar aleijado e não poder destravar uma matraca.
– Você tem dedos ágeis, Alfredo. Poderá destravar qualquer pau de fogo. Só não poderá detonar o fogo de Ingrid.
-?!
– Isso mesmo! Estou dizendo que nossa tutora tem mercúrio nas veias. Não precisa que lhe acendam o pavio. Ela é chama, toda chama; uma labareda que não se deixa queimar e queima todo mundo. Está doido por ela, não é mesmo?
– Ela me atrai.
– Tenha cuidado. Ela é fogosa, mas pode jogar água fria e lhe deixar impotente por um bom tempo. Ela é fria, cruelmente fria nas verdades.
Quatro da manhã, não resistem ao sono; interrompem para se deitar. Duas camas no quarto dos fundos. Às nove continuam. Meio-dia o relógio da parede badala para dar conta da fome. O portão da frente range. O pai de Alfredo entra. Com as volantes numa sacola, pulam o muro para o quintal vizinho. Não há ninguém no terraço, onde têm que passar para ganhar a rua. São surpreendidos por um velho troncudo, zeloso de sua posse.
– O que é isso? Vocês estão invadindo minha casa!
Alfredo conhece-o, e nunca trocara palavra com ele.
– Desculpe, meu senhor. Só fizemos isso para evitar um constrangimento. Há uma visita em minha casa que nós queremos evitar. Desculpe.
– Era o que faltava!…
Ingrid redigira confiante na aprovação dos parceiros notívagos. Volantes em maços de cinco, dez, distribuídas sob as portas de residências operárias.
Horácio teria que trabalhar na manhã seguinte, foi dispensado. Sentiu alívio porque se pouparia dos reparos dela.
Alfredo e Ingrid, Miguel e Alice se fingem de namorados; braços dados, sobre os ombros. O primeiro casal segue avenida Rosa e Silva; o segundo, a Norte, a partir de Casa Amarela. Param, cada um em sua via, num boteco vazio. As mulheres se abstêm, os homens entornam cachaça pura. Na inhaca do álcool, o disfarce em caso de abordagem policial..
– Pura! Sem nada! Quero comer alguma coisa – queixa-se Miguel, e come um bolinho de carne com cheiro de mofo.
Alfredo bebe sem se queixar; fez do copo o instrumento de imolação por poder tocar em Ingrid… E não celebrar a posse. Ela, soberana e submissa, confidente dos duendes.
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Ela tinha alergia à lama do Capibaribe |
De manhã, o bairro enche-se de polícias.
Comemora a seu modo, Ingrid, com o par, em lugar incerto, longe da morrinha do Capibaribe.
Pênis místico
– Stálin perdeu a paciência com Trotsky. Foi provocado muitas vezes. Provocação pessoal! Chamar Stálin de vacilador! O marechal de aço! No começo, foi paciente. “Pare com isso, Trotsky… Pare com isso, Trotsky.” Stálin perdeu a paciência, e decidiu pela execução do provocador…
– Com um machado, seu João? Ele foi morto com um machado! – intervém Horácio.
– Stálin era um revolucionário prático… Não tinha preocupação com estética!
– Não está provado que foi Stálin o mandante da morte de Trotsky. – media Miguel – Está provado que tinha interesse no sumiço do provocador Trotsky.
– Bem dito, rapaz. O executor era doido; mora em Cuba. Não ajuda nem atrapalha a revolução no Caribe. A história não julgou o executor, julgou Stálin porque ele enfrentou os nazistas.
O velho tira proveito feito uma ave de rapina.
Os três, sós, assuntam.
Horácio mistura gula com luxúria.
– Ainda canto a cozinheira de seu João. Como mexe na panela… É uma maga, uma feiticeira por quem me deixaria envenenar.
– Ela desconfia de suas intenções?
– Desconfia. Do mesmo modo que Ingrid desconfia de você. As mulheres do povo têm mais células olfativas do que as filhas da burguesia, mais do que a classe média inconformada como nós.
– Cante-a de uma vez. As mulheres do povo impacientam-se com mais frequência quando se trata de sexo.
– Estou esperando…
– … que amadureçam as condições para a revolução popular… – pilheria Miguel.
– Que ela ponha um camarão no meu caldo. Mordo o camarão para comê-la depois.
– Não tem medo de se pôr sob a tutela de Ingrid, e vacila em fazer a corte a uma cozinheira do povo.
– Tomasa, o seu nome é Tomasa. Quero dançar uma salsa com ela.
– O que mais o preocupa, Horácio? A revolução ou o futuro que reserva a sua luxúria? – incita-o Alfredo.
– Preocupo-me com a estética do amor. Tenho tempo para pensar nisso. Todos temos que pensar nisso. Você pensa e nega com a grossa lente dos óculos. Ingrid pensa… ou não?
– Ela se preocupa com a estética da revolução. É uma mulher sensual e age como se não tivesse útero. Não consigo vê-la dominada, urrando sob um pau viril. Parece um autômato e olha para todo operário como se fosse um pênis místico!
– O que estará fazendo nossa tutora, agora? – conjetura Horácio.
– Fornicando sem a afetação que rouba de Rosa Luxemburgo – sentencia Miguel.
– Está dizendo que nossa tutora é uma impostora?
– Não. Tenho confiança nela. Mas acho que esconde alguma fraqueza. Mostra-se e ao mesmo tempo se esconde. É o nosso fantasma da ópera. Ela poderia assumir-se de vez e seria uma mulher integral.
– Uma revolucionária sincera.
Um fauno nu
Na volta ao sítio.
Raquel reouve-os com os rapapés. Ingrid a inquire sobre a rotina do sítio depois que saíram.
– Só uma vez na padaria. Me perguntaram quem eram os moços com sacolas nas costas, que tinham saído de minha casa pra pegar o ônibus na rodovia. Eu disse que eram estudantes evangélicos em retiro.
– Menos mal. Ainda assim, ruim. Chamamos a atenção.
Na lateral da casa, em declive, tinha-se acesso a uma clareira. Sentam-se. Alice pergunta se não é o caso de suspenderem a reunião. Fora seguida no Prado por um estranho, seguida em três quarteirões; no quarto, uma Kombi estacionara de seu lado. Dois homens desceram para pegá-la. O motorista não tivera o cuidado de desligar o motor, deixando a porta aberta. Ela entrou no portão de uma casa, esbarrou com uma mulher no quintal. Faltou-lhe ideia para forjar uma desculpa. Confessou que era estudante contra a ditadura, estava sendo perseguida por dois polícias. A mulher indicou-lhe o portão de trás, com acesso à avenida Caxangá. Na calçada, pegou um ônibus e safou-se. A mulher teria dito que em sua casa ninguém bateria em estudante.
– Tem certeza de que não foi seguida até aqui?
– Tenho. Mas no caso a certeza nunca é absoluta.
Ingrid intui:
– Não podemos sair daqui em grupo. Seria muito arriscado. Também não vamos abrir a reunião agora. Vamos relaxar. Parabéns, Alice. Você teve iniciativa na frente do inimigo. Não se intimidou.
À noite a luz do terraço é mantida acesa para não mudar o costume. Sentam-se num canapé velho, na sala, sob a claridade de três candeeiros; um ao lado do outro, sem se olharem.
Ingrid atenta para a viuvez sossegada de Raquel.
– Não pensa em casar outra vez?
– Não quero lavar cueca de velho.
– E um namorado?
– Esse não lava a cueca, mas pode ser mais prático.
– Você não vai a festas?
– Vou aqui, no São João. Não danço. Me divirto na fogueira, faço promessas. Já quiseram me casar com o comissário. Deus me livre! Me obrigaria a passar graxa em seu sapato.
Ingrid boceja. Raquel vai arrumar as camas. Ingrid não deixa, corre para ajudar. Vai à latrina. Dá boa-noite na volta e ordena o cumprimento do horário. Alice deita-se no quarto vizinho, sozinha. Horácio, Alfredo e Miguel, no último, junto à cozinha. Ingrid deita-se para tramar contra o risco de um dia ficar viúva. Há tempo para a confabulação com os duendes.
O vento sopra nas telhas. A casa embebe-se de perfumes fluviais.
Dormem rendidos ao culto do povo ribeirinho. Raquel balbuciara uma oração. Ingrid dera-lhe boa-noite para encobrir a crença incréia, com as pernas dissolutamente abertas. No hospital, a dor não permitira a visita dos duendes.
Sente pruridos nas pernas, dá-se conta do incômodo na bexiga. Levanta-se. Empurra a porta do banheiro nos fundos, sem ruído. Está sem os chinelos, no chão frio. Não acendeu nenhuma luz; a do quintal permanece acesa. Não senta para mijar, fica de frente à latrina, olhando para baixo. Os cabelos cobrem-lhe os lados do rosto.
Alfredo levanta-se. Cruza a porta de trás semiaberta, inculpando os outros. No banheiro, depara-se com ela nua, parada, com gestos vagos nas mãos. Dá meia-volta e estranha-a por não tê-lo visto ou sentido sua presença. Ela anda em seu rumo, com os olhos fechados, movendo os beiços. A penumbra não esconde o tufo de cabelos no ventre. Ele, duro, segue-a com a vista. Mijou ali mesmo, e correu para despejar o resto na latrina. Deita-se sem acreditar na matéria de seu corpo, crendo-se ubíquo no sítio de Raquel. Vira Ingrid presumindo-a um fauno à procura de gnomos. Não dormiu para não desfazer a fábula. Em casa não tinha o costume de ir ao banheiro com os óculos. Agora, os duendes o petrecharam com as grossas lentes. Ingrid aparecera para jamais sair do transe dele.
De manhã, ela foi com Raquel comprar os pães. Quisera maquiar-se. Foi advertida de que ali, àquela hora, ninguém usava pinturas no rosto. Convinha conciliar-se com os costumes, inda que contrariando recomendação da turba no sonho. Queriam-na incendiária. Alfredo acomoda-se na espreguiçadeira para não andar às tontas. Nunca se sentira tão protegido com os óculos. Horácio, com papel e lápis, senta-se sob um jenipapeiro, fazendo enxertos no romance. Miguel não gostava de sair do quarto, não antes de o grupo juntar-se. Alice acorda tarde confiando no apoio de Ingrid.
Ingrid entedia-se quando a tensão do conluio se desfaz. Horácio decide sujeitar a apatia:
– Não temos arma nenhuma!
– Não. Mas estamos exercitando a perspectiva do confronto armado! – objeta Ingrid.
Doença infantil! Outra vez Horácio sente engulhos.
Ela considera ter cumprido o fado que lhe coubera. Terá que viajar para outra cidade com a mesma sorte, longe da morrinha do rio Capibaribe. Espera dois meses até ser substituída. Viajarão sem dizer para onde, ela e o parelho.
Tem encontros com cada um, para ouvir o juízo de suas lições. Voltar à casa de Raquel tornara-se arriscado.
Despede-se de Alfredo na capela do cemitério de Santo Amaro, à tarde. Sai pela porta da frente, rumo ao portão. Deveria manter-se sentado, ele, até ela sumir sob o gradil. Levanta-se, vê a silhueta de Ingrid se amesquinhar sob as palmeiras. Custa a crer na última chance de apreciar o passo estugado dela. Grita:
– Ingrid!
Ela ouve, não olha para trás.
Na segunda-feira, ele escuta num canto a salsa dançada por Horácio e Tomasa.
* Marco Albertim é escritor, jornalista e colunista do Vermelho