Luíza Erundina, uma coerente posição de classe
Sem ânimo de polêmica com posições políticas de um partido aliado, sólido ponto de sustentação da coalizão que ajuda o presidente Lula a governar o país, um comunista não pode deixar de saudar com regozijo as declarações de conteúdo classista da deputada socialista Luíza Erundina acerca da disputa pelo governo de São Paulo.
Por José Reinaldo Carvalho
Publicado 23/06/2010 16:43
Saiu na coluna do Ilimar Franco em O Globo desta quarta-feira (23): “No congresso do PSB, domingo, em São Paulo, a deputada Luiza Erundina fez um discurso contra a candidatura do presidente da Fiesp, Paulo Skaf, ao governo, e disse que não pedirá votos para ele. ‘O doutor Skaf está no partido errado. Ele tem que explicar por que está num partido socialista, já que representa outra classe, e não os trabalhadores. Os interesses de classe são inconciliáveis. Ele é contra, por exemplo, a jornada de 40 horas’, explicou ontem Erundina”.
Paulo Skaf é, como se sabe, presidente licenciado da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), uma organização corporativa do grande patronato. Repentinamente, o industrial, de uns tempos para cá, passou a flertar com a esquerda, ingressou no Partido Socialista e foi homologado candidato ao governo de São Paulo. Mas não consta que tenha renunciado a suas posições de classe e cedido posições no confronto com os trabalhadores.
A deputada sabe do que está falando. Sua eleição a prefeita de São Paulo em 1988 foi resultado de uma combativa campanha eleitoral que teve conteúdo profundamente classista. Fez campanha nas fábricas e nos bairros periféricos de São Paulo. Do Campo Limpo ao Tremembé, da Freguesia do Ó a Itaquera, lado a lado com os comunistas do PCdoB e os socialistas do PT, à época seu partido, ela fez corpo a corpo com a classe trabalhadora, de quem extraiu forças para operar a espetacular virada numa campanha em que se encontrava em desvantagem e, pela esquerda, derrotar os candidatos Paulo Maluf (PDS) e João Leiva (PMDB). Na época a eleição majoritária era disputada em apenas um turno, e a candidata Erundina estava em terceiro lugar.
O Brasil vivia então a transição lenta, gradual e segura entre a ditadura e a democracia. Eram os tempos contraditórios da Nova República, de muitas conquistas democráticas, entre elas a Constituição — batizada de “cidadã” por Ulysses Guimarães —, da legalização do partido comunista, da liberdade sindical e de intensas mobilizações populares, mas também de cedências à direita e de tutela das Forças Armadas sobre o poder civil.
No dia 8 de novembro de 1988, uma semana antes das eleições municipais, uma greve de metalúrgicos em Volta Redonda (RJ) foi reprimida a ferro e fogo pelo Exército, que invadiu a fábrica atirando e matou três operários. Outros 31 ficaram feridos.
O episódio sangrento comoveu o país, e a solidariedade de classe dos operários pesou na hora do voto. Erundina foi eleita prefeita de São Paulo com o voto popular, destacadamente dos trabalhadores.
A ex-prefeita de São Paulo fala de maneira cristalina sobre noções fundamentais da ciência política: “Os interesses de classe são inconciliáveis”. Alguns dirão que são conceitos arcaicos, uma roupa mofada, com cheiro de naftalina. Mas, em meio às complexidades da vida e da luta política, há coisas assim mesmo simples, que de tão óbvias parecem exóticas, como no verso de Um Índio, de Caetano Veloso.
Dirão também que a deputada socialista está tendo uma síndrome de sectarismo, estreiteza de visão, principismo, rigidez tática e obreirismo. Hoje não há espaços para tais manifestações, e o conjunto da obra da ex-prefeita não sustenta a acusação. A esquerda e a centro-esquerda têm amadurecido bastante e avançaram anos-luz em termos de flexibilidade tática e política de alianças. A coerência de classe e de princípios é que às vezes faz falta — portanto, não custa tomar com respeito e seriedade a declaração de Erundina.