Morte na Cargill: a versão do cifrão
Índio, 29 anos, pai de três filhos, Marcos morreu quando caiu dentro do tanque de resfriamento de frangos (chiller), ao escorregar enquanto fazia uma limpeza rotineira de resíduos. Mas, para o procurador da Seara, “foi suicídio”. A solene mentira só es
Publicado 13/07/2007 17:10
“A cega mentira cínica, que da verdade se esquiva” se vestiu de Cargill e adentrou o recinto da Justiça às 10 horas da manhã do dia 6 de julho de 2007 na 4ª Vara do Trabalho de Criciúma.
Está nos autos do Poder Judiciário Federal, da Justiça do Trabalho de Santa Catarina: o doutor Washington Antonio Telles de Freitas Júnior, OAB/SP nº 75.455, “procurador da ré”, Seara/Cargill, “disse que o acidente ocorrido em Sidrolândia – MS, com o trabalhador Marcos Antonio Pedro foi decorrente de suicídio”. Esclareceu ainda que não estava “prestando depoimento”.
A esposa de Marcos considera a alegação da empresa um despropósito. Ele havia acordado no horário de sempre, às três e meia da manhã, pois entrava no turno da madrugada. Era uma quarta-feira, 28 de março, e Marcos foi pegar o ônibus que o levaria até o frigorífico de Sidrolândia. Ele estava contente com a aproximação do Dia do Índio, 19 de abril, onde iria fazer uma apresentação de dança. A mãe de Marcos contou da sua animação e do convite para que fosse lhe visitar e ver de perto os preparativos. O irmão, Edílson, diretor da escola indígena, fez o mesmo relato, e das expectativas de Marcos com relação às filhas, de 3 e 5 anos, da oportunidade de aprender e progredir. Falou do futebol, da torcida do irmão pelo São Paulo e do caixão em que foi colocado aos 29 anos, menor do que o seu tamanho, da irmã desconfiada afastando as flores e vendo que os pés haviam sido cortados para que coubesse. “Isso de falarem em suicídio é absurdo, muito cruel”, desabafou Edílson, lembrando que na aldeia de quatro mil pessoas nunca se ouviu falar de um único suicídio entre os índios terenas.
Insegurança
O tanque de resfriamento de frangos (pré-chiller), a máquina que moeu Marcos vivo, não tinha a mínima segurança. Prova disso é que a direção da empresa determinou que fossem feitas mudanças no local antes mesmo da chegada dos fiscais do Ministério do Trabalho, pois seria uma confissão de culpa. Como denunciou o presidente do Sindicato dos Trabalhadores de Sidrolândia, Sérgio Bolzan, o ambiente foi adulterado, numa atitude criminosa. Depois da tragédia, foram feitas inúmeras melhorias nos itens de segurança, desde a colocação de bordas de inox até o rebaixamento das plataformas móveis, a partir das quais era feita a limpeza.
Índio, 29 anos, Marcos morreu quando caiu dentro do tanque. Escorregou enquanto fazia uma limpeza rotineira de resíduos, com a máquina em movimento. “Queriam cortar o tanque e tirá-lo por baixo, mas, ao invés disso, o controle de qualidade da empresa determinou que se invertesse o movimento de rotação das espirais. Não deu certo e ele foi praticamente cortado ao meio”, lembra Clodoaldo, auxiliar de inspeção geral na unidade. “Estive com a menina que presenciou tudo, ouviu os gritos de socorro, foi terrível, Marcos teve ainda a cabeça prensada”, acrescenta.
Abuso
Mas, para o procurador da Seara, “foi suicídio”. A solene mentira só está documentada porque a juíza Desirré Dorneles de Ávila Bollmann garantiu que constasse nos autos do processo ACP 01839-2007-055-12-00-2, movido pelo Ministério Público do Trabalho e pelo Sindicato dos Trabalhadores na Alimentação de Criciúma e Região contra os abusos praticados pela multinacional norte-americana.
O processo que corre em Forquilhinha, pequena cidade catarinense, é outro, não diz respeito diretamente à vida de Marcos, embora agora sirva para que seu nome não seja vilipendiado – e a família indenizada. Em Forquilhinha também está instalado um frigorífico da multinacional, que exporta, para além de carnes de frango, a saúde e a segurança de muitos brasileiros, com a multiplicação das lesões por esforço repetitivo. A unidade emprega dois mil trabalhadores, submetidos, como amplamente denunciado, à mais absoluta barbárie. Uma vez detectada a gravidade de uma lesão, rua. A Ação Civil Pública que tramita na cidade está “calcada nos documentos juntados aos autos que indicam temperaturas inferiores a 10 graus nas salas de corte”, diante do que a Justiça determinou que devem ser feitas pausas, além do fornecimento de melhores equipamentos de proteção individual contra o frio.
“Pelo procurador do Sindicato foi dito que, na verdade, o trabalhador leva o atestado e a empresa recusa o recebimento e ainda faz pressão para o funcionário pedir demissão. Como muitos casos que foram atendidos pelo Sindicato, razão pela qual não vê possibilidade do trabalhador individual ficar lutando contra a empresa”.
“Pelo procurador do Ministério Público do Trabalho foi dito que a empresa está se recusando a cumprir a lei no que diz a sua obrigação primeira de ter que notificar as doenças profissionais querendo atribuir esta obrigação exclusivamente ao trabalhador ou ao sindicato…”
“Pela MM Juíza foi dito que nos Estados democráticos o princípio da justice for all determina que o direito à vida pertence a todos, indistintamente, de tal sorte que o mister se faz conciliar o direito individual à saúde dos trabalhadores com os eventuais interesses econômicos e não sacrificar seja de um ou de alguns trabalhadores em prol da atividade empresarial”.
É o que está escrito.
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