Robert Fisk: morre Waldheim, ex-Onu, criminoso de guerra

Bem, o velho trapaceiro está morto. Isso é tudo que posso dizer depois que ouvi, ontem, que Kurt Waldheim encontrou o último dos seus dias aos 88 anos. Gastei meses, anos, investigando seu passado obscuro no país que agora se chama Bósnia, onde ele — n

Eu me lembro, quando Waldheim foi presidente da Áustria, que selos com seu rosto foram publicados, que os céus nos poupem. Não havia nenhuma menção, naturalmente, dos anos 1943, 1944, ou 1945 ou como ele apareceu na Jordânia quando o Rei Hussein — que agia ali como se fosse um legítimo britânico — o recebeu no aeroporto de Amã. Eu estava no local quando esse ultrajante baixinho passou em revistas as tropas da guarda de honra jordaniana, batendo seus sapatos como devia ter feito quando saudava seus mestres na Iugoslávia durante a Segunda Guerra Mundial.



Waldheim — seus amigos adorariam não ler essas palavras hoje — foi baseado em uma cidade chamada Banja Luka, um cidade de comércio intenso, onde sérvios, judeus e comunistas croatas foram assassinados em massa, enforcados como frangos ou estuprados até a morte no campo de extérminio vizinho, em Jasenovac. Waldheim queria que nós acreditássemos que ele não sabia nada disso, que ele era um mero oficial de inteligência do Grupo E da Wehrmacht, cujo comandante, o general Löhr, havia sido condenado à forca após a Segunda Guerra Mundial por crimes de guerra.



Foi um jornalista austríaco que me alertou sobre Waldheim, cujo pai lutou na Wehrmacht e sobreviveu à evacuação nazista do Norte da África (“Espero não tê-lo matado”, disse-me o criptologista especialista na máquina Enigma, quando eu disse à ela da sua tentativa de escapar pelo ar. Seu plano foi vazado pela rede aliada). “Procure pela letra “W”, disse-me o jornalista austríaco, pelo W após cada debrifim, cada comando aliado capturado pela Gestapo, cada prisioneiro a ser extinto à “nacht und nebel” — à noite e na névoa.



Não, Waldheim não ordenou que fossem mortos. Ele nem mesmo interrogou os comandos britânicos, ou como ele disse, fez meras cópias de seus relatos. Seus suboficiais fizeram os interrrogatórios (não vamos pormenorizar o real significado de interrogatório). Então os prisioneiros britânicos desapareceram nas névoas da noite.



Eu lembro de ter achado os papéis da interrogação de um jovem britânico que foi pego tentando escapar da Iugoslávia durante a guerra. Eles estavam nos arquivos do Escritório de Arquivos Públicos de Kew (Conhecidos como Arquivos Nacionais) e ele foi uma pequenina prova do que os nazis faziam na época. Sim, ele admitiu que era um agente britânico, que estava usando um uniforme britânico e que sim — aí está a coincidência maior, o “W” — que tinha sido interrogado por Waldheim. E que então ele foi levado e executado e que Waldheim — cujos colegas salvaram as vidas de prisioneiros britânicos —não deu a mínima bola sobre o destino daquelas almas.



Eu me lembro de como visitei a Bósnia em 1990 para investigar o passado de Waldheim. Ele tinha escrito uma tese, como havia dito ao mundo, nos últimos anos da guerra. Disse que não sabia nada do jugo nazista nos Balcãs. Disse que havia sido ferido no Fronte Oriental (Na URSS). Mas aqui há uma manipulação da verdade. Ele foi enviado para a Iugoslávia. Ele era um oficial de inteligência do Grupo E do Exército. Foi mandado para Banja Luka e — anos antes de a cidade ser a capital dos sérvios bósnios na ultrajante guerra entre muçulmanos e cristão — eu visitei os lugar onde ficava o quartel-general nazista, onde os sérvios me mostraram seus arquivos, ainda escondidos dentro de pastas opacas do Exército Nazista.



Visitei também seu recinto onde fazia os interrogatórios, próximo de um pátio de execução onde sérvios e judeus eram  massacrados diariamente. Será que os disparos dos fuzilamentos não perturbavam a concentração de Waldheim? Ah, como ele deve ter achado boa a paz e a quietude dos escritórios das Nações Unidas em Nova York.


 


Monty Woodhuse era o líder do SOE (Serviço Executivo de Operações em tradução livre) na Grécia durante a guerra, e perseguiu Waldheim por anos a fio depois dela, junto com um acadêmico judeu bastante corajoso. Waldheim publicou o seu chamado “Livro Branco”, procurando provar que era inocente de crimes de guerra (tempos depois, seu QG fora transferido para o Hotel Angleterre, em Atenas). Ele não sabia, disse. E seus amigos comentavam silenciosamente que sua esposa era membro do partido Nazista na Áustria, nos anos 1930, não ele. E comentavam também que era um mero servidor civil, um dos que — de acordo com as palavras do professor judeu — “davam um empurrãozinho às coisas”.



Então, quais memórias que Waldheim levou consigo para o túmulo? Durante a guerra, os guerrilheiros liderados por Woodhouse capturaram um cigano que estava espionando para os italianos. Woodhouse decidiu que ele deveria ser enforcado.



Perguntei a ele como se sentia ao ter feito tal coisa — para cometer o que, supostamente, nós chamamos de crime de guerra, que Waldheim comprovadamente havia feito. Woodhouse me respondeu, em palavras que escrevi e que reproduzo aqui: “Isso foi terrível, me senti horrivel. Eu ainda volto à mesma cena, de tempos em tempos. Ele era um jovem odioso. Não disse nada, estava cheio de terror. Ele era uma espécie de imbecil. Eu estava presente ao enforcamento. Ele foi enforcado em uma árvore. Simplesmente tiraram uma cadeira sob seus pés. Eu não acho que levou muito tempo para ele morrer. Não sei exatamente quanto tempo durou. Nós estavamos em menos de cem homens, era o início da ocupação. Se nós tivessemos deixado ele partir, certamente ele teria contado aos italianos sobre nós… Além disso, eu havia dito que não fossem feitos prisioneiros”.



Quando eu deixei a Bósnia, no verão de 1988 logo em seguida à conclusão de minhas investigações sobre Waldheim, eu liguei para meu editor, Ivan Barnes, do jornal The Times, para dizer a ele que eu vi tantos paralelos entre Iugoslávia e o Líbano de 1975 que eu acreditava que irromperia uma guerra civil ali em um futuro próximo. Os servios me incomodaram bastante por ter vindo ao quartel de Waldheim em um carro dirigido por um croata. “Se isso ocorrer a gente vai dar”, grunhiu Barnes ao desligar o telefone. Em 1992 eu cobri a guerra para o The Independent.



E sobre Waldheim? O Estado austríaco o defendeu. Ele apareceu em selos postais. Foi até a ópera. Foi proibido de entrar nos Estados Unidos, justamente quando não precisava mais ir até lá. Editou o “Livro Branco”, supostamente para provar que não sabia nada dos crimes de guerra nazistas.



Seus ex-colegas das Nações Unidas fofocaram sobre sua hipocrisia. E eu me lembro bem das palavras do seu número dois nas Nações Unidas, dizendo que sempre sabia que “KW” era um “biltre” — isso depois de eu ter comprado o tal “Livro Branco”, três dias antes, na livraria Waterstone, em Londres, no qual o frontispício, escrito pelo pelo mesmo sujeito, saudava Waldheim como um “homem de princípios”.



Em 1987, o rei Hussei levou Waldheim às colinas de Um Queiss para que olhassem a Cisjordânia ocupada pelos israelenses. Deu a ele a medalha Hussei bin Ali, que homenageava seu avô. O rei saudou Waldheim por seu patriotismo, integridade, sabedoria, e “nobreza de valores”. Eu preciso dizer que o superior de Waldheim na Iugoslávia, o general Löhr, foi enforcado como criminoso de guerra.


 


Fonte: The Independent