A fala da ministra e a “minoria branca perversa”

Por Olívia Santana*
Ele disse: “ O problema da violência no Estado só será resolvido quando a minoria branca mudar sua mentalidade(… ). Nós temos uma burguesia muito má, uma minoria branca muito perversa”. Ela disse: “A reação de um negro de não quer

A primeira declaração foi dada pelo ex-governador de São Paulo Cláudio Lembo, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, durante a grave crise que abalou a capital paulista em maio de 2006 e pôs em xeque a segurança pública no Brasil. A segunda foi dada pela ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, em recente entrevista a BBC-Brasil, que teve como tema as celebrações dos 200 anos de proibição do trabalho escravo no Reino Unido.



Duas trajetórias distintas



Sem dúvida Cláudio Lembo e Matilde Ribeiro são duas figuras de trajetórias de vida e de formação política distintas. Ele é um homem branco que se auto-define pequeno-burguês, e que sempre serviu a projetos políticos conservadores neste país, desde a ditadura militar. Foi membro da Arena, que virou PFL e atualmente se travestiu de Democratas.



Ela, mulher negra, de origem pobre, militante da luta anti-racista e vinculada a um partido de esquerda, o PT. O que ambos têm em comum? O fato de serem pessoas investidas de cargos públicos que, de alguma forma, meteram o dedo na velha ferida não cicatrizada da nação, o racismo como um dos elementos estruturantes dos graves problemas sociais.



Duas reações opostas



A fala de Lembo foi recebida com surpresa, muitos dos seus iguais ficaram desconcertados, enquanto que outros trataram de lembrar-lhe que ele era parte da elite que criticara. O senador ACM chegou a atacá-lo no velho estilo truculento que lhe é peculiar, chamando-o de “burro” e incompetente. Mas não ficou sem resposta. Lembo se referiu a ACM como “senhor de engenho” e disse que o senador retrata a elite branca, que trata os outros como se fossem lacaios.



No caso da Ministra Matilde, a reação de alguns intelectuais e articulistas não é só desproporcional. É, também, uma distorção intencional do conteúdo das suas declarações na tentativa forçosa de caracterizá-las como incitação ao ódio racial.

Pode ter sido inadequada a formulação da resposta à pergunta feita pelo jornalista da BBC-Brasil. Decididamente não é “natural” o racismo de negros contra brancos nem de brancos contra negros. São sim construções políticas e culturais, que como tais precisam ser superadas. Mas o que a fala da ministra sugere é que não é o ideal que se apele a violências, destratos, marginalizações por inscrição racial, quer seja de brancos contra negros, quer seja de negros contra brancos, mas que tal estado de coisas acontece como reação de alguns a um processo de opressão e subalternização histórico.



Intenções subliminares



Não querer reconhecer isso é um desserviço à nação. O espanto  dos ofendidos em nome de uma idealizada miscigenação harmônica e cordial bem ilustra intenções subliminares. Como se fossem paladinos da paz e da tranqüilidade das relações raciais à moda brasileira, os protetores do que já foi consagrado como “racismo cordial”, pedem a cabeça da ministra, exigem que ela entregue o cargo ou que o presidente Lula a demita.



Sob pretexto de que a fala da ministra traz um teor racista, os grandes jornais e revistas do país vêm questionando não só suas declarações, mas a própria política de promoção da igualdade racial que vem sendo implantada no Brasil, especialmente o programa de cotas para negros nas universidades e a titulação de terras de remanescentes de quilombos. 



Portanto, há algo de podre no reino da Dinamarca, digo, nas nossas terras tropicais. E o que há é que aqueles que sempre se beneficiaram da perversa hierarquia racial e sócio-econômica solidamente erguida e ocultada sob o manto da miscigenação como sinônimo de democracia racial, morrem de medo de que os de baixo se movam, tomem consciência da opressão de que sempre foram vítimas.



Os que sangraram sob aquarela



É fato que a história desse país precisa ser reescrita. Sobre este solo precisa se erguer novas relações sociais verdadeiramente não racializadas. Negros e indígenas precisam ser incluídos como sujeitos políticos de um novo projeto de nação, onde a diversidade seja compreendida como um elemento de valorização e não de subalternização de uma parcela, para efeito de dominação econômica, cultural e política por parte de uma outra parcela, aquela que atravessa a história perpetuando-se nos espaços de poder e alto prestígio social através de sucessivas gerações.



Lamentavelmente para alguns ou, talvez, para muitos e, principalmente, os que dominam o poder da divulgação de idéias, como a mídia e os alçados por essa como os intelectuais de plantão sobre a questão racial—um processo de conscientização de negros e de muitos brancos sobre a possibilidade de um país mais humano já está em curso. As demandas por políticas afirmativas bem ilustram tal processo por um outro projeto, não bicolor, mas que decola do reconhecimento da real diversidade de povos que construíram o país, especialmente os que sempre sangraram sob a aquarela, sem jamais experimentarem a delícia do reconhecimento e da igualdade real de direitos.



* Vereadora (PCdoB Salvador), dirigente da Unegro (União dos Negros pela Igualdade)