A Platéia de Serra

Por  *Joalve Vasconcelos dos Santos

Repercutindo o pensamento das elites, a grande mídia não pára de pressionar o poder público a “cortar gastos”. Essa expressão, contudo, nunca chega a ser explicitada à população, pois o recado é dirigido unicamente aos governantes, e seu real sentido é convenientemente escondido dos governados. Ora, “cortar gastos” nada mais é do que um jargão repisado que significa arrochar o salário de servidores públicos, aposentados e pensionistas, diminuindo os recursos destinados não só a esses salários como também à implementação dos direitos sociais previstos na Constituição, em especial educação, saúde e segurança.


 


Será possível que alguém acredita que os direitos sociais possam ser estendidos a todos os brasileiros ao mesmo tempo em que são arrochados os salários exatamente dos responsáveis pela oferta desses direitos à população ? Apesar do evidente paradoxo, nunca faltam jornalistas e políticos dispostos a encenar esse complicado número de prestidigitação que pretende acoplar “corte de gastos” com aperfeiçoamento do serviço público.


 


Fiel a esse figurino, o governador José Serra não esperou muito para dizer a que veio. Antes mesmo de completar cem dias de governo, já piscou o olho para a turma do “corte de gastos”, marcando posição firme para 2010. Obrigado a oferecer reposição anual aos servidores públicos do Estado por força de lei aprovada recentemente, o governador anunciou que o reajuste será oferecido por mérito e eficiência e não de forma linear para, segundo disse, “melhorarmos a remuneração, melhorarmos a qualidade do atendimento e cumprirmos a finalidade do serviço público, que é atender bem a população”. Segundo o próprio governador, o mérito não seria avaliado individualmente, mas entre as diversas áreas ou unidades administrativas, sem adiantar porém os critérios, os responsáveis e os instrumentos de tais avaliações.


 


Não apareceu ninguém, salvo as entidades dos servidores, para apontar as dificuldades de implementar semelhante proposta, como as injustiças que podem ser cometidas, bem como o indisfarçável viés “corte de gastos” que parece se esconder por trás da iniciativa, que nega a letra da Constituição, que usa a expressão “sem distinção de índices”, para referir a revisão geral a que os servidores têm direito anualmente. Em suma, tudo bem diferente dos propósitos solenemente anunciados por Serra na inauguração de uma escola. Logo ali.


 


Se não bastasse o fantasma da eficiência e mérito avaliados por bolsões, que ninguém ainda sabe aonde vai dar, o secretário de Gestão Pública, Sidney Beraldo, adiantou que o governo não pretende mexer em benefícios já consagrados como gratificações por tempo de serviço e outros, referindo-se a qüinqüênios e outros sucedâneos de planos de carreira existentes no funcionalismo, transparecendo assim o eventual poder de fogo do governo contra os servidores.


 


Por fim, a verdadeira face do governo de São Paulo e sua real intenção com os servidores e com os que dependem dos serviços oferecidos por esses aparece claramente no decreto 51.660, assinado por Serra em meados de março, o qual instituiu a Comissão de Política Salarial, a qual passa a ter a prerrogativa de ditar as diretrizes da política salarial na administração direta, autárquica, fundacional e inclusive nas sociedades de economia mista, chamando para si a sanção final de qualquer acordo trabalhista. O propósito é evidente e constitui a instituição de mais uma instância, normativa, deliberativa, decisória e principalmente centralizada nas mãos do próprio governador, ao qual está vinculada, que os trabalhadores do setor público deverão passar a enfrentar e vencer para ver seus pleitos atendidos.


 


Como se vê, o que preocupa o governador Serra está longe de ser a qualidade do serviço público oferecido à população. Se tivesse tal preocupação, concederia um reajuste linear, incluindo aposentados e pensionistas, que não têm uma reposição de seus salários desde a implantação do Plano Real, em 1994. Se pretende premiar os servidores que mais se destacam – o que é muito louvável –  estudaria um plano de carreira, onde o mérito fosse aquilatado individualmente e os servidores pudessem ascender segundo a sua real dedicação ao serviço público e à população de São Paulo, sem prejuízo da revisão geral devida a todos, e sem o caráter perniciosamente competitivo que pretende instaurar. Ao contrário, a platéia que Serra pretende agraciar é definitivamente de outra estirpe. Aliás, ela nem sequer se vale dos serviços públicos.


 



* Joalve Vasconcelos dos Santos é Vice-Presidente da Federação dos Sindicatos dos Servidores Públicos no Estado de São Paulo – FESSP-ESP e Presidente do Sindicato dos Servidores Públicos do Poder Legislativo do Estado de São Paulo – SINDALESP.