Por que acidentes trágicos no trabalho calam bocas

Leia artigo de Álvaro Rodrigues dos Santos, geólogo, sobre os motivos que levam sérios acidentes de trabalho na engenharia, como o que ocorreu na Linha 4 do Metrô, não serem devidamente apurados no Brasil. O artigo, originalmente publicado na revista

No Brasil acidentes em engenharia emudecem bocas


 


Álvaro Rodrigues dos Santos*
 


 


A ocorrência nestes últimos anos de uma seqüência de graves acidentes em obras de engenharia por todo o país, com perda de vidas humanas e enormes prejuízos econômicos e patrimoniais para a sociedade, deveria naturalmente provocar, além de investigações criteriosas e resolutivas em cada caso, uma profunda, corajosa e transparente reflexão por parte de profissionais, entidades setoriais, empresas e órgãos públicos afins sobre o que esteja a ocorrer de errado na engenharia brasileira.


 


No entanto, não é isso que se vê, pelo contrário, acidentes como o do colapso do túnel da linha 4 do metrô paulistano em dezembro de 2006 na rua Amaro Cavalheiro, o colapso da ponte na BR 116 sobre a represa de Capivari, no Paraná, em novembro de 2005, o rompimento da barragem de Campos Novos, em Santa Catarina, em junho de 2006, o rompimento da barragem de Câmara, na Paraíba, em março de 2004, o rompimento da barragem de rejeitos de mineração do rio Pomba, em Minas Gerais, em janeiro de 2007, como dezenas de rupturas de taludes, aterros, e pontes que têm levado o caos ao sistema rodoviário e ferroviário do país em épocas de maior pluviosidade, assim como inúmeros casos de outros acidentes de toda sorte que não chegaram ao noticiário jornalístico, não foram objeto de investigações técnicas oficiais conclusivas e de definição e julgamento de responsabilidades. E isso sem considerarmos o enorme número de gravíssimos problemas técnicos que não são caracterizados como acidentes, mas que trazem enormes danos à sociedade brasileira, como a deterioração precoce de pavimentos viários e outros tipos de obras públicas, a recorrência das enchentes e a multiplicação das áreas de risco urbanas e de suas vítimas.


 


Passado o momento mais tenso, corre-se o exato risco dessa mesma triste história repetir-se no caso do recente acidente na estação Pinheiros da mesma linha 4 do metrô paulistano.


 


Ao contrário, é já da cultura tecnológica dos países mais adiantados utilizar ao máximo os acidentes em obras de engenharia como preciosas oportunidades para o avanço do conhecimento, tanto nos aspectos técnicos como nos aspectos gerenciais diretamente envolvidos nesses eventos. Uma cultura que não precisou de grandes sabedorias para se estabelecer, apenas um mínimo traço de inteligência e bom senso, pois que, discutindo transparentemente os acidentes ocorridos, como também outras deficiências técnicas importantes que apenas não se caracterizaram como acidentes, aprende-se e evita-se que situações similares venham a ocorrer.


 


Infelizmente, no Brasil essa cultura tão virtuosa não só não é praticada como é ostensivamente rechaçada pelo setor empresarial atuante em engenharia e pela própria administração pública normalmente associada como contratante ou concedente de obras e serviços públicos. Essa inaceitação da discussão aberta sobre eventuais causas de acidentes e demais problemas em obras de engenharia é normalmente expressa não só pelas próprias empresas e administradores públicos diretamente associados a esses episódios, mas também por associações sindicais empresariais e até algumas instituições de regulação e promoção da engenharia que teriam como missão elementar a organização desse tipo de debate, mas que têm preferido, ao contrário, pautar-se por atitudes tipicamente corporativas e castradoras do diálogo necessário.


 


Aquelas poucas entidades e especialmente aqueles poucos profissionais que insistem em pessoalmente contribuir para uma corajosa e séria discussão dos fatos são via de regra tachados publicamente como incendiários, polêmicos e detratores da imagem da engenharia nacional; acusações quase sempre acompanhadas das infalíveis e maliciosas admoestações do tipo: “não se pode passar o carro à frente dos bois”, “é preciso aguardar a conclusão das investigações” (como se a boa discussão não ajudasse as investigações), ou também, quase sempre, “isso acontece em todo o mundo”, “foi fatalidade”,  “foram imprevistos geológicos e pluviométricos”. Enfim, a velha e tão perniciosa e atrasada cultura nacional de empurrar tudo para debaixo do tapete, um fazer de conta que nada aconteceu. Bem, não é preciso incluir nenhuma argumentação mais explícita para perceber o quanto essa cultura do silêncio afronta os interesses maiores da engenharia e da sociedade brasileiras.


 


O melhor entendimento das razões desses maus costumes é essencial para que um dia possamos superá-los. Nesse sentido, dois aspectos nos saltam aos olhos.
As grandes empreiteiras que tradicionalmente vêm executando nossas obras públicas, e que hoje participam também como concessionárias de serviços públicos de gestão privatizada, têm, ao lado dos grandes grupos financeiros e de algumas empresas do setor industrial, sido responsáveis por perto de 80 por cento do financiamento bruto das principais campanhas eleitorais, de todos os partidos políticos, dos poderes Legislativo e Executivo, em seus diversos níveis.


 


Tudo isso se faz na observância rigorosa do permitido pela lei, e não há aqui qualquer sugestão de alguma improbidade, mas o fato é que nessas circunstâncias ficam inevitavelmente criadas condições de indiscutível constrangimento para a gestão pública de situações em que venham a se estabelecer eventuais ou potenciais conflitos de interesses entre contratantes e contratados, como no caso de complexas querelas contratuais ou situações de eventual comprometimento da boa técnica e da segurança acordadas. Dado que nessas circunstâncias seria natural e imperioso que o Estado, desde o primeiro momento, estivesse resolutamente à frente da exigência de total esclarecimento de fatos ocorridos, da ampla transparência nas investigações para tanto devidas e, finalmente, da exigência da responsabilização judicial dos responsáveis. Se essa seqüência natural de procedimentos puder não ocorrer em sua plenitude, o que esperar?


 


O segundo aspecto refere-se ao fato de que, com a privatização de inúmeras empresas públicas e sua passagem para a administração privada, assim como com a derrocada, por conseqüência da recessão econômica, das grandes empresas independentes de consultoria e projeto, o mercado para pequenas empresas de consultoria e para consultores autônomos de engenharia ficou praticamente restrito às oportunidades abertas pelas próprias grandes empreiteiras e pelas projetistas por elas contratadas. Nesse cenário mercadológico é de se compreenderem os cuidados e a recusa de muitos consultores em emitir suas opiniões pessoais publicamente, pois têm como real a possibilidade de ficar “marcados” e tidos como “malditos” e não mais “contratáveis”, simplesmente por ousar cumprir a elementar obrigação cidadã de se manifestar. Outros consultores vão além: atropelando a ética profissional e cobiçando bons contratos, emprestam seu próprio nome à verdadeira operação de dissimulação técnica promovida nessas situações pelos grandes interesses empresariais e políticos.


 


Nesse contexto, só se pode concluir que esse verdadeiro “nó do silêncio” será muito difícil de ser desfeito; o que sugere a vital importância da mídia para que, vencendo todos os mil biombos, ao menos alguma luz consiga se fazer notar.


 


* Álvaro Rodrigues dos Santos é geólogo e autor dos livros, Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática, A Grande Barreira da Serra do Mar e Cubatão. (santosalvaro@uol.com.br)