Ministra Matilde Ribeiro reformula declaração que gerou polêmica

A ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, afirma que os negros e outros grupos étnicos ou raciais brasileiros vêm, ao longo da história, atuando para fazer parte da vida política do país ao lado do

Ela afirma que, historicamente, o movimento negro construiu espaços e políticas que não excluem outros grupos, e cita as escolas de samba e o movimento capoerista, entre outros, como espaços em que a expressão negra é predominante, mas que todos freqüentam.


 


“Se há ressentimento (por parte dos negros em relação aos brancos), esse ressentimento não é expresso coletivamente. A cultura brasileira é fortemente negra, e ela está para todos”.  A ministra define como sua função no governo  a de “desenvolver ações para a inclusão social e racial e garantir os direitos humanos de todos”. E lembra que a secretaria lida também com outros grupos, como os ciganos, uma população majoritariamente branca que vive no Brasil com as mesmas dificuldades de inclusão dos negros e indígenas.


 


Nesta entrevista ao portal do PT, Matilde Ribeiro fala ainda sobre os avanços promovidos pela secretaria que representa e pelo governo Lula como um todo em direção a uma maior igualdade racial no Brasil.


 


A sra. considera natural o negro se insurgir contra o branco por conta de questões históricas?


 


Embora eu tenha dito isso num contexto de uma resposta muito mais ampla há poucos dias, o que causou uma polêmica, vou me reposicionar: o racismo e a discriminação racial são existentes na sociedade brasileira. E os que vivem a conseqüência disso querem que governo e sociedade brasileira se unam de maneira a incluir, seja na vida política, econômica e social os que vivem os efeitos do racismo. Então, a população negra brasileira tem atuado ao longo da história para fazer parte da vida política do país junto com os brancos. Isto é fundamental para que esta nação se desenvolva. E eu acredito nisso. O que faço no governo é desenvolver ações para inclusão social e racial e garantir os direitos humanos de todos.  


 


Mas existe preconceito de negros contra brancos no Brasil?


Racismo é uma forma de manifestação existente em várias sociedades, não apenas no Brasil, e está balizado por poder. Quem tem poder econômico, político, poder de decisão, toma decisão excluindo quem não tem. Por essa lógica, o racismo brasileiro é histórico, veio da época da escravidão, quando pessoas eram compradas como coisas sem nenhum direito. E, com o fim da escravidão, não houve intencionalmente por parte do Estado e por parte de dirigentes da época nenhuma medida de inclusão dos ex-escravos que passaram a ser cidadãos livres. Então não dá pra dizer que no Brasil não haja racismo nem preconceito. E os que sofrem esse racismo lutam para serem incluídos na luta política brasileira desde sempre, desde a abolição. Os que lutam para ser incluídos querem ter sua cidadania garantida e isso é um direito constitucional. Lutar pelos direitos não é uma forma de racismo. É, sim, uma forma de se afirmar como cidadão.


 


Então, na sua opinião, o preconceito acontece pela condição de exclusão social e não pela cor da pele?


O que avalio é que, no Brasil, o racismo tem elementos econômicos. Mas agregada a esses elementos econômicos, vem também a condição racial. Florestan Fernandes, um pensador que se debruçou para entender, a partir da condição do trabalho e da condição política do Brasil, o que tinha acontecido com os negros após a abolição da escravidão, trouxe várias contribuições. Ele diz o seguinte: “após a abolição dos escravos, os negros foram entregues à própria sorte”. E, com isso, os negros se organizaram através da dança, da música, de formas de sociabilidade, da organização política… Em vários momentos da história vemos a presença da população negra dizendo ao Brasil que quer fazer parte da vida desse país. Então, se formos analisar pelas falas de Florestan, de Otaviani e tantos outros que estudaram esta estrutura, vamos chegar à conclusão de que, no Brasil, a questão racial é centro das desigualdades sociais. Caminham juntas. E que, para alterar a vida do Brasil, para incluir essa massa que foi deixada de lado ao longo da história, temos que ter políticas sociais que combinem as duas coisas, como por exemplo o ProUni, do MEC, em que são concedidas bolsas para alunos de escolas públicas – portanto, pobres – em universidades privadas. E, entre os pobres, há a consideração da existência de negros e indígenas em cada Estado. Então é um programa que inclui pela somatória dos componentes social, racial e étnico.


 


Até porque no Brasil é difícil separar quem é branco e quem é negro…


 


Exatamente. A nossa condução histórica de sociabilidade se fez também pela miscigenação. Mas é fato — todos os institutos de pesquisa, governamentais ou não — colocam essa síntese de que, entre os pobres,  a maioria são negros e indígenas. Essa junção entre a discriminação do ponto de vista racial e social se expressa em números.


 


O estudioso Manolo Florentino, da UFRJ, defende que raça não existe. A sra. concorda com essa afirmação?


Pelos estudos científicos e antropológicos, a gente conclui que a raça é humana. É uma raça só. Agora, dentro da raça humana, existem grupos sociais diferentes, existem culturas diferentes, existem origens diferentes. Dada a lógica de poder na sociedade, sempre houve a relação em que os que podem mais economicamente dominam outros. Isso faz parte de uma lógica capitalista. Agora, negar que exista uma diversidade de grupos raciais é ocultar a história, ocultar a estrutura da nossa sociedade.


 


É possível generalizar e dizer que existe um sentimento negativo do negro diante do branco, seja por questões históricas, seja pela exclusão que eles sofrem hoje?


Essa é uma pergunta que leva para o campo da subjetividade. Não dá para nos apegarmos pelos comportamentos individuais. Eu vou falar a partir de expressões coletivas. Se nós formos pensar pela estrutura de uma escola de samba, que é um espaço eminentemente negro, ela não é feita apenas para negros. É um espaço em que a expressão negra é forte — a música, o ritmo, a dança, tudo tem a ver com a nossa africanidade —, mas é um espaço que todos freqüentam. No movimento capoeirista, outra expressão de cultura negra, participam todos: homens, mulheres, brancos, negros, japoneses… Então, se há ressentimento, esse ressentimento não é expresso coletivamente. Não é expresso nas organizações que reafirmam e valorizam a cultura negra. A cultura brasileira é fortemente negra, e ela está para todos. E eu diria mais: eu avalio que o movimento negro brasileiro é um movimento bastante generoso, porque as políticas que o movimento negro construiu ao longo da história — e vamos pensar o movimento negro mesmo antes da escravidão — não são exclusivamente para negros. 


Nós temos consciência, seja a partir da política governamental ou a partir do diálogo com o movimento negro, de que o desenvolvimento das políticas expressa uma realidade dessa sociedade que tem uma diversidade muito latente, e se coloca para a vida brasileira. E também há um convencimento histórico de que a mudança no comportamento preconceituoso de brasileiros não deve ser impulsionada pelos próprios negros, e, sim, pela sociedade brasileira como um todo.


 


Como a política de governo deve agir de forma a se manter afinada com esse pensamento?


Quando o presidente Lula reconhece que o racismo existe no Brasil e cria a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, ou mesmo quando ele toma uma decisão pessoal e política de aproximação com o continente africano, ele coloca isso como uma forma de pagamento de uma dívida histórica e  conclama os ministros a atuarem nessa perspectiva. Esta secretaria tem a missão de atender a demandas históricas dos grupos discriminados, do ponto de vista racial e étnico, com ênfase na população negra. Portanto, na prática, não atendemos só demandas da população negra.


Vou citar um exemplo inovador, já que a política para indígenas, tão necessária quanto àquela para a população negra, é mais antiga. O fato novo é a política para os ciganos, que são basicamente brancos.  Existem no Brasil cerca de 600 mil ciganos, com distintos modos de vida. Ao contrário do que a maioria pensa, a maioria não é nômade, mas fixos — e pobres. E eles dependem da política pública brasileira tanto quanto os demais pobres. Nossa secretaria  tem coordenado, junto a outros órgãos de governo, num primeiro momento o conhecimento das necessidades dos ciganos, porque este é um grupo invisível na política pública. Coordenamos grupos de trabalho com o Ministério do Trabalho, da Educação, do Desenvolvimento Social, da Cultura. Existe, por exemplo, uma cidade na Paraíba, chamada Souza, em que 50% da população é cigana, demandantes dos programas de transferência de renda do governo e de outros que signifiquem inclusão social. Este é um trabalho desencadeado por esta secretaria porque o único espaço na estrutura de governo em que eles participam como interlocutores é o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Portanto, a questão é muito mais ampla do que a polarização branco-negro. A questão está enraizada na sociedade brasileira. E é importante que existam esses espaços de trabalho que pautem essas questões que são parte da vida política.


 


Voltando à questão dos negros, o governo Lula conseguiu aprovar uma lei que torna obrigatório o ensino sobre história da África no Ensino Fundamental. A lei, que deverá ser um importante coadjuvante na luta contra o racismo, foi aprovada em 2003, mas ainda não foi implantada. Por quê?


 


O presidente Lula, ao promulgar a lei em 9 de janeiro de 2003, responde a uma demanda histórica, protagonizada pelo movimento negro e absorvida pelos vários setores da sociedade.  A importância dela está justamente em quebrar esse paradigma, essa invisibilidade colocada historicamente no que diz respeito à nossa relação com o continente africano e também à nossa relação no Brasil de como a população afrodescendente contribui para a riqueza do Brasil —contribuiu de maneira forçada durante quatro séculos, mas há mais de um século contribui como trabalhador,  homens e mulheres que, através de seu exercício cotidiano de trabalho, estudo, pesquisa, cultura, vêm trazendo contribuições ao Brasil.  Os níveis iniciais do sistema educacional têm uma responsabilidade com a formação não apenas do conhecimento formal, mas também com a estruturação da auto-estima das pessoas. Então, se é importante para um aluno saber que ele é originário da Ásia ou da Europa, é importante também que o aluno negro saiba que ele é originário da África, e que ele não é descendente de escravo; ele é descendente de africanos. Isso faz uma diferença incrível e valoriza nossa contribuição multifacetada para a sociedade. Muitos dos nossos ícones, seja na literatura, na música, são negros. André Rebouças, Machado de Assis, Chiquinha Gonzaga, Cartola e Pixinguinha são negros. Embora a força para o trabalho em todas as áreas seja importante, nós não somos apenas braçais. Somos também. Mas também somos pensadores e somos criativos a ponto de deixar obras homéricas para o Brasil. A implantação dessa lei é fundamental para quebrar esse mito da não-participação na vida política. Não é verdade; nós participamos, só não somos visíveis e não temos representatividade. Agora, toda mudança dentro da estrutura da política pública demora tempo para se firmar. A lei tem quatro anos de existência, e estamos falando de um país que tem 507 anos de existência. Então, a implementação desta lei vai ter seu curso, e é possível acelerar. Mas não se instala em um toque de mágica. É preciso capacitar os professores, preparar as escolas para receber esta nova demanda, trabalhar com os pais, produzir materiais para dentro da sala de aula. Existe um projeto, em que temos participação ativa, chamado “A Cor da Cultura”. O projeto parte da produção um kit de audiovisuais como sendo referência para a sala de aula. Foram capacitados, numa primeira investida,  professores em 47 cidades do Brasil. O programa está dentro das escolas através desses kits e também é reproduzido no Canal Futura e nas TVs educativas. O sucesso do projeto “A Cor da Cultura” é evidente, o Brasil inteiro pede o material.  Além disso, tem o programa da UNB (Universidade de Brasília), convênio do MEC com participação da Seppir,  que tem capacitado à distância cerca de 40 mil professores para que possam lidar com essa temática.


 


Que outros avanços foram sentidos durante os quatro primeiros anos do governo Lula em direção à igualdade racial no Brasil? Há como mensurar uma melhora na sociedade brasileira?


Em quatro anos, o grande feito da Seppir — por meio de sua missão de elaborar projetos e estimular outros órgãos do governo a executar e monitorar esses projetos — foi justamente criar esse intercâmbio e a condição de elaboração de programas conjuntos que venham fazer avançar as políticas públicas.  Vou citar três exemplos: temos, no Brasil, hoje, mapeados e identificados 3.000 quilombos. Em 2002, tínhamos 743 quilombos. E a história oficial lembra sempre do Quilombo dos Palmares, como se essas comunidades fossem apenas uma coisa do passado. Essas comunidades são carentes de políticas sociais. Em geral, não têm escola, não tem atendimento à saúde,  não têm luz elétrica.  Por meio do programa Brasil Quilombola, a Seppir  está trabalhando pela regulamentação fundiária dessas comunidades e, ao mesmo tempo, investindo para que as políticas públicas cheguem até lá.  Estamos atuando com 25 ministérios, procurando acelerar o processo de chegada dos serviços e infra-estrutura aos quilombos, por meio de programas como Luz para Todos, Bolsa-Família, Alfabetização de Adultos etc. Também procuramos a valorização dessa cultura africana, que é viva e pulsante. Outro exemplo é na área do trabalho. Estamos atuando junto com os ministérios do Trabalho e da Educação em um programa ainda piloto que visa o atendimento à categoria dos empregados domésticos, que são cerca de 8 milhões no Brasil — a maior categoria profissional —, entre eles, 95% são mulheres e 57%  são mulheres negras.   Este plano prevê a capacitação do exercício profissional, a elevação da escolaridade e o acesso às políticas públicas com foco na habitação popular. E o terceiro exemplo é o ProUni, coordenado pelo MEC, como forma de garantir o acesso dos alunos pobres nas universidades particulares. A concessão de bolsas é uma forma de garantir a continuidade de permanência na universidade. Além disso, há outras ações de governo que impactam a população negra, como o Bolsa-Família, crédito agrícola, Saúde da Família, entre outros. Então, mesmo sendo difícil até esse momento mensurar a abrangência, é visível que os resultados começam a aparecer e começam a reorganizar a vida brasileira, haja visto o contingente populacional que votou no presidente Lula nas últimas eleições. É extremamente importante saber que os pobres e os que necessitam de políticas públicas, incluindo negros, indígenas e brancos que não têm acesso às políticas públicas reconhecem o empenho dessa gestão na linha da inclusão social e do combate à pobreza. E é papel de governo fazer isso. Governo tem que atender a todos. Mas se a nação necessita de políticas contundentes para poder eliminar seqüelas históricas que causam precariedade de vida, é papel de governo responder a isso. E o melhor exemplo que temos nessa linha é o combate à fome.
 


Fonte: www.pt.org.br