Casal de gêmeos completa 100 anos

Fazer cem anos inspira respeito. No caso dos irmãos gêmeos Raimundo e Raimunda Carlos da Silva, que comemoram hoje um século de vida, o centenário inspira também simpatia, admiração e vontade de viver.

Em 1906, Santos Dumont voou no 14-Bis, celular era uma praga que não tinham inventado e as pessoas morriam mais cedo. Sem a parafernália médica que avança, era difícil dobrar a curva de um século. “De lá pra cá, só está parecido o sol”, resume o bem humorado Raimundo Carlos da Silva, cem anos completos neste domingo, 19. O feito ele comemora ao lado da irmã gêmea, Raimunda Carlos da Silva. “Você já viu isso antes? Dois irmãos gêmeos fazendo 100 anos juntos!? Vivos!?”, admira-se a filha, Núbia, 64, que também tem uma irmã gêmea. A genética já deixou sua marca na terceira geração. Dois netos são gêmeos.


 


Por trás das marcas do tempo, dá para ver a semelhança entre os irmãos. Os olhos azuis, o nariz afilado, o rosto comprido, a boca de lábios finos. “Irmão gêmeo tem mais ligação. Tudo o que vou fazer, faço de acordo com ele. Se era pra vender gado, não combinava com meu marido não, era com ele”, conta “Mundinha”, lembrando a vida passada entre a fazenda Soledade e Canto Alegre, no município de Acopiara, a 359 quilômetros de Fortaleza. O rebanho era grande. “Mundinho” viajava semanas tangendo o gado para vendê-lo nas cidades próximas. “Às vezes chegava em casa num dia e no outro viajava de novo”, conta com um traço de saudade na voz.


 


O terceiro irmão morreu ainda novo. Caiu num poço d'água tentando laçar um touro bravo de uma família que acabara de “fazer propriedade na fazenda”. “Ele caiu no poço, o cavalo caiu atrás. Tiraram ele e o cavalo, mas o pobre se machucou muito, abriu a barriga e teve um febrão que nenhum médico curou. Ficou dez meses internado em Iguatu até que desenganaram e ele morreu”, conta Mundinha. A perda não foi a única que pegou os irmãos de surpresa. Tão de repente quanto a tragédia que levou o caçula foi a morte da esposa de Mundinho, Alice. Ela tinha 34, ele 38. Já eram nove filhos, o mais novo com menos de um ano.


 


Mundinha foi até o alpendre pedir a varanda que costurava há dias. Alice foi na outra casa, “a de dormir”, para buscar. Deixou a tapioca no fogo e custou a voltar. “Fui no quarto, ela estava deitada, os olhos arregalados, as mãos meio erguidas, passando mal”, conta Mundinha. Chovia quando ela chegou ao curral para avisar o irmão. No caminho para a sede do município, o grupo parou em frente ao rio. “Era tanta água por causa da chuva! Foi uma agonia! Mundinho vinha mais atrás e correu pra apressar o pessoal que carregava a rede de Alice. Alguém pediu pra ele ter paciência porque ela estava acabando de morrer”, conta, os olhos molhados.


 


Ela ajudou a cuidar dos sobrinhos órfãos. Se separou cedo do marido. Ele bem que tentou levá-la para Eldorado, no Mato Grosso, mas Mundinha não gostou de jeito nenhum. “Era um frio! A gente nem dormia, enrolada no cobertor, quase sem fôlego”, exagera. “Ele dizia que vinha, que vinha, mas acabou morrendo lá”, conta sem lamúria. Mundinho também permaneceu solteiro. “Era difícil achar uma mulher que agradasse o marido e os filhos”, explica brincando. Sozinho não ficou. Teve seus namoricos. “Gostava de cavalo galopeiro. Botava a namorada na garupa e ia atrás de forró. Usava um perfume, o Flor de Amor, quando chegava nas festas alguém sempre gritava: 'lá vem o cheiroso!'”, ri.


 


As histórias estão vivas na memória. “Nunca pensei que fóssemos durar tanto. Eram 36 primos, todos morreram. Todos”, diz Mundinha. A lucidez dos dois faz bem à saúde. Isso e a vida no sertão, outro remédio para o viço. “O sertão é grosseiro, mas é liberto”, olha longe Mundinho. Ele sente falta da criação. Há três anos deixou o Canto Alegre. Veio para Fortaleza. O filho que cuidava da fazenda morreu no ano passado. “Teve um derrame fatal. O pai sentiu muito”, conta Núbia. Mas Mundinho não é de se lamentar. “Perguntam pra mim, 'o que você está fazendo Mundinho?', e eu respondo, 'distribuindo simpatia'”.


 


Fonte: O POVO