Greenhalgh: Ação por tortura pode mudar paradigma da Lei da Anistia

O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, deputado Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP), disse em entrevista a Paulo Henrique Amorim nesta quinta-feira (9), que a ação declaratória da família Telles contra o coronel Ustra é paradigmática Acred

Segundo Greenhalgh, que é advogado e milita na área de direitos humanos, a ação da família Telles deve incentivar outras famílias de vítimas de tortura no período militar a ingressar na Justiça.


 


Greenhalgh disse que não vê motivos para a Justiça indeferir a ação por justa causa. Ele lembrou que apesar da Lei da Anistia, de 1979, isentar de culpa os agentes públicos que cometeram crime no período da ditadura, a Constituição de 1988 diz que: “A Lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura” (Atigo 5º, inciso 43).


 


O coronel Ustra é acusado de torturar a família Telles durante a ditadura no Brasil. Ele foi o comandante do DOI-COD de 1970 a 1974 (Leia Militar começa a ser julgado por tortura na ditadura).


 


Leia a íntegra da entrevista:


 


Paulo Henrique Amorim – Até que ponto essa ação declaratória leva a uma revisão da Lei da Anistia no Brasil?
Greenhalgh –  Eu acho que essa ação declaratória pode ser no âmbito dos tribunais e da Justiça hoje considerada uma ação paradigmática. Da mesma forma como, durante o regime militar, a família do Vladimir Herzog moveu uma ação contra a União e teve ganho de causa na responsabilidade objetiva pela morte de Vladimir Herzog, da mesma forma com que naquele caso do Vladimir Herzog, foi uma ação judicial que mudou a conduta dos tribunais com relação à responsabilidade da União federal nos casos de prisão, morte e tortura e, nesse momento, quero lembrar a figura de Marco Antonio Rodrigues Barbosa, o papel que ele teve como advogado neste caso. Também, modestamente, tem uma outra ação que eu considero também paradigmática, que coincidentemente eu sou o advogado, que diz respeito à obrigação do Estado brasileiro abrir os arquivos do regime militar e buscar as informações necessárias para a localização dos desaparecidos na região do Araguaia que, depois de 20 anos, nós tivemos ganho de causa, no início, meados do ano de 2003 perante o Tribunal Regional Federal e que ainda está em recurso, mas a decisão do Tribunal Regional Federal obriga a União federal a dar as informações aos familiares sobre o paradeiro dos desaparecidos da guerrilha do Araguaia. Essa ação de agora, da família Telles contra o coronel Ustra, também, na minha opinião, será uma dessas ações paradigmáticas, em relação ao momento em que a gente vive. Qual é a questão jurídica? A questão jurídica é que a Lei de Anistia de agosto de 1979, a lei 6.673, estabelecia que estavam anistiados naquelas condições todos que tinham sofrido perseguição por motivo exclusivamente políticos ou praticado crimes conexos aos crimes políticos. A intencionalidade da Lei de Anistia ao colocar a expressão “conexo” era para absolver antecipadamente de qualquer acusação os agentes públicos que teriam praticado crimes contra os direitos humanos durante o período do regime militar.


 


PHA – Essa discussão sobre o termo conexo foi longa e, se eu não me engano, o ministro da Justiça era o Petrônio Portela.
Greenhalgh – Exatamente. Muito bem, isso foi aprovado no Congresso. Em 1979. Em 1988 já houve uma modificação na Constituição federal. A constituinte de 1988 estabeleceu no artigo 5º, inciso 3º, “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. Mas, no artigo 44, diz assim: “Constitui crime inafiançável e imprescritível as ações de grupos armados, civis ou militares contra a ordem constitucional e o Estado democrático”. O inciso 43 do artigo 5º: “A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura”. Então, é a Constituição que disse que não pode ser anistiado aquele que é acusado de tortura. Ora, as pessoas que foram acusadas de tortura e que na Lei de Anistia não poderiam ser colocadas a juízo na Justiça pela lei de 1979, deixam de sê-lo pela edição da Constituição em 1988. Então, eu considero que a expressão crimes conexos está revogada pela Constituição de 1988 no artigo 5º inciso 43 que considera crime inafiançável e imprescritível a prática de tortura. Portanto, tem base legal, constitucional, a ação da família Telles contra o coronel Ustra.


 


PHA – Mas isso nunca tinha acontecido antes.
Greenhalgh – Nunca tinha acontecido antes, na minha opinião, porque não tinha tido, digamos assim, uma iniciativa de familiares e também não tinha tido uma atualidade do assunto. A questão dos desaparecidos do Araguaia, a questão das punições ao Pinochet no Chile, a questão das punições aos militares da ESMA, na Argentina, da Escola de Mecânica Armada da Argentina, a condenação de pessoas pelas madres e as avós da Praça de Maio na Argentina… Todo esse processo de revisão do período do regime militar na América Latina, que nós aqui do Brasil estamos acompanhando o Chile, a Argentina, o Uruguai, o Peru, a Bolívia, digamos assim, incentivou a família Telles a procurar essa brecha na Constituição. Então eu não vejo nenhuma possibilidade, analisando legalmente essa questão, que essa ação possa ser indeferida por falta de justa causa. Não, há uma justa causa, a justa causa é a Constituição de 1988, que derrogou os crimes conexos quando considerou imprescritível, insuscetível de graça ou anistia, portanto não podem ser anistiados. Este caso passa a ser um caso paradigmático e acho que a depender dessa decisão, da mesma forma quando se dependeu da decisão do Vladimir Herzog, outros familiares ingressaram na Justiça. Acho que essa ação vai fazer jurisprudência. É uma ação importante em relação a isso.


 


PHA – Agora, uma última pergunta, não querendo abusar da sua paciência. Eu me lembro que como repórter fui à ONU assistir a uma solenidade em que o presidente Sarney assinou um tratado internacional contra a tortura, que o presidente Sarney na época considerou um passo político importante, significativo dos novos tempos da redemocratização. Então quer dizer que o Brasil é também internacionalmente responsável pela punição de agentes do Estado que pratiquem tortura?
Greenhalgh – Na questão da tortura, nós viemos avançando do ponto de vista legislativo interno e externo. Você sabe que a Constituição é de 88, depois disso houve uma lei, a lei 9455, de abril de 1997, que define os crimes de tortura e dá outras providências. E já na constituição do crime de tortura, que dizia: “constranger alguém com emprego de violência, com o fim de obter informação…”. Ta certo? E repetia, reclusão de 2 a 8 anos e dizia: “também não pode ter graça, indulto, fiança, anistia os torturadores”. E agora, no Congresso Nacional, coincidentemente eu sou o relator dessa matéria, há um pacto internacional contra a tortura, o tratamento desumano, cruel e degradante, que já foi aprovado na Comissão de Justiça por um parecer meu. E está prestes a ser votado no plenário da Câmara. Ainda essa semana eu conversei com o presidente Aldo Rebelo com a idéia de que terminada, acabada as medidas provisórias que estão trancando a pauta, se dê a esse pacto prioridade para que o Brasil, até o dia 19 de novembro possa firmar mais uma vez, reafirmar, a sua luta contra a tortura.


 


PHA – Por que 19 de novembro?
Greenhalgh – Porque no dia 19 de novembro, os 60 países que adotaram esse pacto poderão indicar pessoas e representantes na corte internacional contra tortura da ONU. Então nós temos o prazo governamental para sermos um dos 60 primeiros e dentre esses 60 primeiros o Brasil ter um representante na comissão de combate à tortura da ONU. Por isso nós é que nós estamos tentando agilizar isso e o presidente Aldo Rebelo disse que tão logo a pauta seja destrancada pelas medidas provisórias, ele porá isso em votação. Não há divergência político-partidária nesse pacto. Todo o Congresso Nacional é favorável a esse pacto.