Militar começa a ser julgado por tortura na ditadura
Decisão inédita da Justiça de São Paulo permite, apesar da Lei da Anistia, que o coronel Brilhante Ustra seja réu em processo movido por uma família de participantes da resistência à ditadura. Maria Amélia de Almeida Teles diz ter sido torturada pessoalme
Publicado 09/11/2006 11:59
Depois de a Justiça decidir, numa situação inédita, que a Lei de Anistia (1979) não impede a abertura de processo contra militares acusados de tortura durante o regime militar (1964-85), ocorreu ontem a primeira audiência que coloca o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra no banco dos réus.
Cinco pessoas de uma mesma família processam Ustra, acusando-o de seqüestro e tortura em 1972 e 1973.
Ustra não compareceu ao tribunal e não ouviu os relatos das cinco testemunhas da família, que disseram terem sido torturadas sob o comando do coronel (leia texto nesta página).
Os advogados do militar já informaram que irão recorrer da decisão de primeira instância que permite a abertura de processo contra os anistiados.
A novidade da decisão judicial é que, ao contrário de processos anteriores relativos à tortura durante a ditadura militar, ela não visa o Estado, mas um funcionário público.
O processo civil movido pela família contra Ustra é declaratória. Pede o reconhecimento (declaração) de que houve danos morais e à integridade física. Seu conteúdo é mais político e simbólico. Não requer indenização pecuniária nem implica pena de multa ou prisão.
Na Argentina, as “leis do perdão” foram revogadas, e os acusados por tortura na ditadura militar do país (1976-83) são submetidos a julgamento.
A decisão
Na decisão publicada em 27 de setembro, o juiz titular Gustavo Santini Teodoro, da 23ª Vara Cível do Estado de São Paulo, considerou que o processo pode ter como réu pessoa física -Ustra-, e não necessariamente a União.
E que, mesmo três décadas após os acontecimentos relatados pelos autores da ação e negados pelo militar, é possível haver punição, porque estão “em causa […] direitos humanos”. Para Santini, a ação é imprescritível.
O casal César Augusto Teles e Maria Amélia de Almeida Teles e três parentes afirmam que o coronel reformado Ustra os submeteu à tortura física e psicológica nas dependências do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações -Centro de Operações de Defesa Interna) de São Paulo.
“Fui torturada pessoalmente pelo coronel. Foi ele também que determinou a invasão da minha casa, a prisão da minha irmã e de meus dois filhos, que tinham quatro e cinco anos”, afirmou Maria Amélia, que ficou 11 meses presa. “Meus filhos ficaram pelo menos dez dias na prisão.”
O DOI-Codi era o principal órgão de segurança empenhado no combate a opositores do regime militar.
Na sua unidade paulista, ao menos 40 militantes foram mortos sob tortura de setembro de 1970 a janeiro de 74, conforme levantamentos independentes. Nesse período, o comandante era Ustra.
Defesa
Um dos pilares da defesa de Ustra no processo é a afirmação de que os agentes de segurança foram beneficiados pela anistia de 1979 e que, por isso, não podem ser julgados.
Para o juiz da 23ª Vara Cível, no entanto, “a Lei de Anistia refere-se apenas a crimes, não a demandas de natureza civil” -como a ação declaratória.
Ustra também alegou que a ação deveria ter o Estado como réu. Para o juiz, “não há no ordenamento jurídico norma que impeça a vítima de atuação de agente estatal de propor ação contra este”.
A Justiça ainda não se pronunciou sobre o mérito da ação. Ustra sustenta que não submeteu seus acusadores a violência. Seus defensores afirmam nos autos: “Quanto às descrições de tortura (…), o réu [Ustra] jamais permitiria semelhante ato”.
“Fui torturada pelo coronel”, diz historiadora
As torturas durante o regime militar eram comandadas pelo então major Carlos Alberto Brilhante Ustra, 74, hoje coronel reformado.
A afirmação acima foi repetida ontem, em construções diferentes, pelos cinco ex-presos políticos ouvidos pelo juiz Gustavo Santini Teodoro, da 23ª Vara Cível de São Paulo.
“Eu fui muito humilhada e torturada física e psicologicamente pelo coronel. Até hoje tenho trauma do que me aconteceu”, afirmou a historiadora Marly Rodrigues, que ficou de 12 a 15 dias presa com Maria Amélia, uma das autoras da ação.
O também historiador Joel Rufino dos Santos relatou ao juiz uma história parecida. Disse que, após ser preso e levado para o DOI-Codi, foi seviciado pelo próprio coronel.
“Todas as operações de tortura contra presos políticos eram comandadas pelo então major Ustra”, afirmou o jornalista Ivan Seixas, que foi preso com o pai em abril de 1971, sob a acusação de agir contra o regime militar.
“Eu fiquei mais de seis anos preso. E vi o coronel Ustra torturando presos. Um deles morreu, era o jornalista Luiz Eduardo Rocha Menino”, declarou o jornalista.
Segundo ele, Maria Amélia e o marido estavam muito abatidos na prisão. “Eles mancavam. Depois fiquei sabendo que eles tinham passado por choques elétricos no pau-de-arara e na cadeira do dragão [cadeira de zinco que aumenta a potência do choque].”
Élia Menezes Rola, que também dividiu a mesma cela com Maria Amélia, afirmou que a colega foi muito torturada, que o rosto estava tão machucado que quase não podia reconhecê-la.
Ricardo Maranhão, outro ex-preso político, disse que viu Maria Amélia pela primeira vez quando ela estava na sala de tortura, muito machucada. Afirmou ainda que a irmã dela, Criméia, estava grávida e levava “muitas pauladas na cabeça”.
Maria Amélia e o marido César Teles dizem terem sido torturados pelo coronel. Afirmam ainda que, por ordem dele, a casa da família foi invadida e os filhos do casal foram presos ao lado da tia Criméia.
Ustra chefiou DOI-Codi de 1970 a 1974
Coronel reformado do Exército, Carlos Alberto Brilhante Ustra, 74, comandou, de setembro de 1970 a janeiro de 1974, o DOI-Codi de São Paulo, o maior órgão de repressão aos grupos de esquerda envolvidos na luta armada contra o regime. Houve 502 denúncias de torturas referentes a esse período.
Em agosto de 1985, a atriz e então deputada federal Bete Mendes o apontou como o homem que a torturara e pediu ao presidente José Sarney que o destituísse de seu posto na Embaixada no Uruguai.
O então ministro do Exército defendeu o coronel, que foi transferido para a reserva dois anos depois. Ustra publicou dois livros: Rompendo o Silêncio, em 1987, e Verdade Sufocada, em 2005.
Fonte: Folha de S. Paulo