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Cláusula de barreira: sem legitimidade constitucional

Numa lúcida análise jurídica da cláusula de barreira, lei contra a qual o PCdoB vem lutando desde sua instituição, o procurador de Justiça aposentado Samuel Sérgio Salinas coloca em xeque a medida e mostra que seu caráter é antinconstitucional. “O regime

Samuel Sérgio Salinas*


A institucionalização democrática do regime político brasileiro assegura a livre criação dos partidos políticos. Essa liberdade constitucional somente está submetida a medidas que visam preservar a soberania nacional, o respeito ao pluripartidarismo e aos direitos fundamentais da pessoa humana. O caráter nacional do partido político não admite margem para requisitos limitadores da liberdade de organização partidária. O artigo 17 da Constituição Federal dispõe: “É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos…”.


Nenhum desses preceitos se refere a eleições, número de eleitores, quer em nível nacional, quer quanto a resultados eleitorais obtidos nas diversas unidades da Federação.


O que a lei repele são partidos políticos regionais. Optou-se pela nacionalidade dos entes políticos. Na primeira constituição republicana admitiam-se agremiações como os partidos republicanos mineiro e paulista, no período denominado da República Velha.


Personalidade jurídica


Obtida a personalidade jurídica, na forma da lei civil, deverão os partidos políticos registrar seus estatutos no Tribunal Superior Eleitoral. A personalidade jurídica é adquirida na forma da lei civil e esta não estabelece limitações quaisquer em relação a resultados eleitorais para atribuir personalidade jurídica aos partidos. O funcionamento parlamentar, a que se refere o item IV do artigo 17 da Constituição Federal, pressupõe o registro do partido nacional e não se reporta ao número de parlamentares de suas representações, nem a resultados obtidos em eleições.


O regime democrático nacional assimila o voto à representatividade partidária e o partido político é o único a expressá-la. Restrita a representação popular partidária, o voto deixa de ser a livre expressão da vontade do eleitor.


Compelido a escolher dentre os partidos beneficiados pela regra numerológica de representações específicas, nesta ou naquela unidade da Federação, esvazia-se a liberdade do eleitor, a natureza democrática de sua universalidade, e arquiteta-se o voto indireto.




Caráter nacional


O caráter nacional, a que se refere a Constituição, não permite à legislação comum, denominada infra-constitucional, restringir a existência de partidos por outros requisitos, a não ser os determinados no artigo 17. O caráter nacional é programático, independe de votos nesta ou naquela unidade da Federação. O alvo constitucional é repelir partidarismo fracionado, por estados, programas ou regiões.


O partido nacional, por sua vez, desfruta da liberdade de arregimentar os seus membros, eleitores ou não, em todo o país, pois o caráter nacional repudia o temido segregacionismo, ou seja, partido que adote o desmembramento da Nação.


A exigência de que tenha tantos membros neste ou naquele estado para se caracterizar como partido nacional é uma intromissão fática inadmissível ao preceito constitucional. O caráter nacional não se caracteriza pelo número de aderentes pertencentes a tantas ou quais unidades da Federação. Pelo contrário, esta contraditória exigência compeliria o partido a ser parcialmente federativo, a despeito do que dispõe a norma constitucional.


Não cabe à lei ordinária adotar o mau exemplo da lei 9096/95 ao afirmar que somente é nacional o partido que comprove o apoio de eleitores correspondentes a, pelo menos, meio por cento dos votos dados na última eleição geral para a Câmara dos Deputados, não computados os votos em branco. De onde obteve o legislador ordinário esta proporcionalidade? Certamente não foi da Constituição que não a prescreve. Nacional para o legislador ordinário poderia ser a proporção que entendesse? Poderia o legislador ordinário adotar os parâmetros das Câmaras Municipais, dos vereadores, ou qualquer outro, como a exigência de patrimônio? A Constituição não conferiu à lei ordinária o condão de nacionalizar, de ditar o que se entende por nacional na lei magna, de maneira semelhante às leis que consideravam somente eleitores os que tivessem determinada renda. A situação é idêntica.

Evidentemente o poder constituinte poderia estabelecer, para gáudio de alguns, esta exigência, mas não o fez na Constituição de 1988.


A exigência de determinado número de parlamentares e tantos votos para reconhecer a legitimidade constitucional dos partidos, e o exercício de seus direitos, desqualifica o registro partidário e impede a liberdade de que desfrutam os cidadãos brasileiros dispostos a criar o órgão político que os represente no parlamento.


Soberania popular


A garantia constitucional estende-se ao cidadão no exercício da soberania popular pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto. Suprimindo-se o partido ou impedindo-o de oferecer ao cidadão o seu programa social e político desvirtua-se o voto e a soberania popular, estabelecidos no artigo 14 da Constituição. Este dispositivo, este artigo, para sermos mais explícitos, menciona valor igual, para todos, do voto; daí a sua universalidade. Não haverá igualdade no momento em que o partido político perder essa condição fundamental, a igualdade político-partidária, estendendo-se a restrição, como vimos, ao eleitor, retirando-lhe o direito fundamental de escolher livremente o seu partido e seus representantes parlamentares.


Esta igualdade será truncada por qualquer lei que desrespeite a Constituição e asfixie os partidos constitucionalmente organizados. Instaura-se a desigualdade dos votos, retirando do cidadão o exercício maior do sufrágio universal. A universalidade desse direito institucional é assegurada pela existência dos partidos, não pelo número maior ou menor dos afiliados ou votantes. Vota-se no partido e o voto só é universal quando o partido existe no amplo espectro da vida política contemporânea. Na hipótese da restrição imposta pela denominada cláusula de barreira, delimita-se o voto a partidos beneficiados por providências múltiplas, a livre escolha do legislador ordinário, ou seja, rompe-se a proteção constitucional.


A lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995, reiterou a tentativa de sufocar os direitos resultantes da livre organização partidária, ora vertidos no artigo 17 da Constituição; diz a lei infra-constitucional, no seu parágrafo 1º: Só é admitido o registro do estatuto de partido político que tenha caráter nacional, considerando-se como tal aquele que comprove o apoiamento de eleitores correspondentes a, pelo menos, meio por cento dos votos dados na última eleição geral para a Câmara dos Deputados, não computados os votos em branco e os nulos, distribuídos por um terço, ou mais, dos estados, com um mínimo de um décimo por cento do eleitorado que haja votado em cada um deles.


Luta social e política


Decisão prolatada pelo Ministro Marco Aurélio opõe-se a esta renovada tentativa de afastar da luta social e política os partidos que eventualmente não tenham obtido determinados resultados em certa disputa eleitoral: exsurgem conflitantes com a Constituição Federal os preceitos dos §§ 1º e 2º do artigo 5º da Lei nº. 8.713/93, no que vincularam a indicação de candidatos a presidente e vice-presidente da República, governador, vice-governador e senador a certo desempenho do partido político no pleito que a antecedeu e, portanto, dados fáticos conhecidos. A Carta de 1988 não repetiu a restrição contida no artigo 152 da pretérita, reconhecendo, assim, a representação dos diversos segmentos sociais, inclusive os que formam dentre as minorias.” (ADI 966, Rel. min. Marco Aurélio, DJ 25/08/95).


No seu artigo 13 reitera esta lei 9096, como se não lhe bastasse o que já dispusera, disposição semelhante, de forma tal que revela a ampla dúvida que presidiu a sua votação. Tem direito a funcionamento parlamentar em todas as casas legislativas para as quais tenha elegido representante, o partido que, em cada eleição para a Câmara dos Deputados obtenha o apoio mínimo de cinco por cento dos votos apurados, não computados os brancos e os nulos, distribuídos em pelo menos um terço dos Estados, com um mínimo de dois por cento do total deles.


Paradoxo



A situação é conflitante, paradoxal: a Constituição cria os partidos, mas a lei ordinária só admite o funcionamento em dadas circunstâncias. O legislador ordinário suprime o direito constitucional. Cria um ente que será desenhado pelo legislador ordinário. Em suma, desfaz o que é sólido no ar rarefeito da lei inferior.


O partido político previamente definido em todos os seus aspectos na Constituição Federal, existe antes de eleições que só por eles podem ser disputadas. A lei comum, posterior ao pleito eleitoral, não pode submetê-lo a restrições, ou seja, matá-lo no nascedouro, estranho aborto legislativo. A Constituição perde a expressão normativa do povo reunido para resvalar em direção ao decisionismo inspirado no direito nacional-socialista.


Sob o embuço da lei ordinária, decide o poder partidário–legislativo definir a natureza do partido político que melhor lhe satisfaça na conjuntura política e social. Delineia-se o partido pelo poder dos partidos, das maiorias conjunturais, da vontade do supremo legislador com as rédeas do poder. Enormes são os riscos decorrentes dessa animosidade partidária aos pequenos, pois embute, sob os auspícios da lei ordinária, precedente dos mais danosos ao regime democrático.


O furor legislativo espraia-se por todos os recantos desta malfadada burocracia eleitoral, a confundir eleitores e parlamentares, como se lhes faltasse o cartesiano bom senso. Investe-se por todos os lados, emaranhando nas teias dos artigos, parágrafos, incisos, letras a representação popular que é a mais eficaz para exigir dos partidos o comportamento que se harmoniza com a formalidade única e essencial da sua natureza de representação popular.


Não ampara essa lei os seus numerosos dispositivos pois, ao intentar dispor normativamente, afasta-se da legalidade constitucional, moral, ética e democrática que a Constitucional estabelece.


O alvo político dessa lei ordinária não é resguardar o eleitor, o seu voto, direto e secreto, mas compelir as minorias a votar nos partidos que dispõem dos imensos recursos arrecadados das minorias bem acomodadas na mais injusta das ordens sociais existentes. Se quiser, diz esta lei, escorada no cinismo social dominante, vote neste ou naquele enriquecido partido que dispõe dos recursos nacionais para adquirir os afagos da mídia, sempre disposta a retribuir nos seus meios as bênçãos e os dinheiros que são, mais do que os partidos, a maior desigualdade entre nossa gente.
Não falemos em precedentes; a norma constitucional alemã procurava, com a cláusula de barreira, evitar que os nazistas obtivessem representação no seu país mal-ferido pelo horror da guerra infame. Numerosas constituições não cogitaram sequer de manietar os seus eleitores dessa maneira. A nossa Constituição podia, como fez, evitar esse escolho ao poder soberano das elites conjunturais brasileiras, sempre aterrorizadas ante a vontade popular.





* Samuel Sérgio Salinas é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo (aposentado), e foi professor de Direito na Unicamp