Direita se prepara para aprofundar a crise depois da eleição

Por José Carlos Ruy
A proximidade da eleição de domingo, e a eventual vitória de Lula no primeiro turno, desenha o pior dos cenários para a direita brasileira, que acalentou o sonho de levar a disputa para o segundo round, ganhar tempo para intensifica

A trapalhada que envolveu dirigentes petistas no nebuloso caso da tentativa de compra de um dossiê contra o candidato tucano ao governo de São Paulo, José Serra, ajudou a grande mídia, quase totalmente envolvida no sistema de poder que compartilha com a direita brasileira, a afastar o foco sobre as acusações contra ministros e autoridades do governo FHC que surgiram na CPI das Sanguessugas, e clamar pela apuração daquilo que, no caso, é subsidiário – e que também precisa ser apurado. A direita e a mídia puseram de lado a apuração de um crime e, em seu lugar, criminalizam aqueles que, de maneira obscura, tentaram coletar informações a respeito de suspeitos de tê-lo cometido!


 


Chegaram mesmo ao absurdo, como ocorreu em Pernambuco, de indiciar justamente aquele que, como ministro da Saúde do governo Lula, mandou investigar irregularidades que vinham das gestões anteriores. Sobre as suspeitas do envolvimento dos ministros da Saúde de FHC – José Serra e seu substituto, Barjas Negri – foi lançado o manto do silêncio, apesar do presidente daquela CPI, o deputado Antonio Carlos Biscaia (PT-RJ), dizer que existem provas “suficientes para que as investigações sejam aprofundadas. A documentação envolve o ex-ministro Barjas Negri e Abel Pereira de forma contundente'', disse dele.



O tucanato desenha o mapa do inferno
para o segundo mandato de Lula



Mas isso não importa para os vestais do udenismo pós moderno, como o ministro Tarso Genro qualificou a oposição tucano-pefelista e seu clamor por “moralidade”.
O que importa, isso sim, é o uso eleitoreiro destes acontecimentos para tentar requentar a crise insuflada desde maio de 2005 e que vivia seus estertores sufocada pelo alto desempenho do presidente Lula nas pesquisas de opinião.



A gritaria da direita foi incapaz de abater Lula, de tornar Geraldo Alckmin mais palatável para o povo, e de garantir o sonho do segundo turno, que poderá não ocorrer. O retrato desse fracasso foi o comício-chique dos tucanos no clube Espéria, de São Paulo, em 25 de setembro, impotente mesmo para completar os três mil lugares reservados para a platéia tucana, e onde – diz-se – sobraram inclusive manobristas, desnecessários pois o número de automóveis foi inferior ao esperado pelos organizadores. Outra ironia tucana: comício sem povo, em clube particular (e não em praça pública como de hábito), e com manobristas! Como gosta a alta classe média partidária de FHC e sua turma.



O passo seguinte da histeria tucano-pefelista é desenhar o mapa do inferno para o segundo mandato de Lula, como indica a leitura dos comentaristas e especialistas da grande imprensa, que formam o jogral da ilegitimidade da reeleição de Lula. Os analistas emplumados se esmeram na modernização de velhos preconceitos elitistas. Eles tentaram, ao longo destes meses de crise, alguns expedientes. Primeiro, no início de 2005, defenderam a tese de que Lula devia renunciar à reeleição; depois, temendo a reação popular contra um pedido de impeachment, pensaram em sangrar o presidente, que chegaria estiolado a outubro de 2006; não deu certo, e passaram a defender a tese de que somente um segundo turno poderia legitimar a reeleição, e que a vitória logo no dia 1o de outubro significaria uma anistia do eleitorado ao presidente, deslegitimando seu segundo mandato. Também não colou e, agora, preparam-se para o day after da eleição retirando do baú de maldades políticas da direita a surrada tese, já usada contra Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek no passado, da ilegitimidade do eleito. Contra Getúlio e Juscelino, em 1950 e 1955, alegaram – sem a menor base constitucional – que os eleitos não alcançaram a maioria absoluta dos votos e, por isso, não podiam tomar posse.



A direita volta a ameaçar com
o impeachment de Lula



Um dos participantes desse jogral elitista é o advogado Miguel Reale Júnior, que foi ministro da justiça de Fernando Henrique Cardoso e é presidente do comitê financeiro da campanha de Geraldo Alckmin; ele quer a “impugnação eleitoral” de Lula; se ela não ocorrer, pensa que a “impugnação jurídica” será inevitável! (Folha de S. Paulo, 21/9/2006).



O dono da Folha, Otávio Frias Filho, que em seus devaneios é um intelectual pós-moderno, assombra-se com o fantasma da “república sindicalista” da direita pré-1964 e o atualiza ao referir-se – no mesmo dia 21/9/2006 – a uma “máfia sindical-partidária” que a “cúpula petista” teria instalado no aparelho de Estado, comandada por aquele que chamou, de forma desrespeitosa e mal educada, de “Lula, o chefão”. E acena com a mesma sangria a que a direita espera submeter o presidente num eventual segundo mandato. “Se houver segundo mandato, haverá muito trabalho para o Ministério Público, para o Judiciário e para o que restar de imprensa independente ‘neste país’'', escreveu ameaçadoramente.



O outro jornalão paulista, o diário da família Mesquita – a mesma que teve papel destacado na articulação do golpe militar de 1964 – é parceiro da Folha na elaboração dos argumentos desse tipo. Em editorial (O Estado de S. Paulo, 26/9/2006) diz que “será problema dos brasileiros” ter Lula na presidência por mais quatro anos. No dia seguinte, voltou à carga em outro editorial fundamentado no mesmo preconceito antipopular que anima a direita desde tempos imemoriais. “Lula desperdiçou a oportunidade histórica de ensinar à grande massa de seus eleitores os valores básicos da democracia”, principalmente “num país com um eleitorado com o nível de educação do brasileiro”. O subtexto é eloqüente: o povo, massa ignara, é incapaz do exercício democrático, e um dos erros de Lula foi não tê-lo ensinado.as regras “democráticas” ao gosto da classe dominante.



Para a direita, o voto não
dá legitimidade aos eleitos



Argumento ilustrado em outro artigo publicado naquela edição, onde a professora Lourdes Sola diz, num palavreado metido a elegante, que o “desenlace da crise de governo atual depende também (mas não só) da legitimidade eleitoral outorgada pela população ao vencedor”. O importante, aqui, é o que ela sugere sem dizer claramente: o voto é apenas um dos elementos que legitimam o vencedor de uma eleição, embora ela não diga quais sejam os outros elementos. “O superávit da legitimidade eleitoral é apenas uma das condições de legitimidade política do governante” escreveu ela, contrapondo-se assim a um dos fundamentos da democracia moderna, a soberania popular manifestada nas urnas em eleições livres e periódicas.



Mesmo assim, e certamente baseada nesses elementos não declarados de legitimidade, ela prossegue sua análise, assegurando que “as perspectivas de um segundo mandato apontam para um alto teor de incerteza no quadro político num futuro tão próximo quanto o dia seguinte das eleições”. E faz uma pergunta que ilustra os dilemas de uma direita que tem o poder do dinheiro e da mídia, mas está destituída dos instrumentos de poder que teve no passado, a força militar (que hoje é profissionalizada e manifesta-se avessa a aventuras golpistas) e a influência sobre a classe média (que já não forma a opinião dos de baixo): “Qual será ‘o modo Lula de governar’, diante do contraste entre sua legitimidade eleitoral e o controle que exerce sobre movimentos sociais?” É uma pergunta sintomática inquietadora para a direita, que a professora completa com outra: “Como passará a usar, ou será tentado a usar os poderes de Estado à disposição da Presidência?” Palavreado que pode ser traduzido de forma mais compreensível, no temor de que Lula mobilize o povo contra os golpistas. Nada mau para uma professora que é também consultora da Mendonça de Barros Associados, esse ninho que reúne notáveis do tucanato intelectual e da área financeira! E que demonstra as saudades que a direita brasileira tem da ditadura e sua aversão ao voto popular – principalmente quando esta manifestação do eleitor foge ao estreito figurino que seus luminares desenham para o povo.



O dilema tucano-pefelista:
querem o impeachment,
mas temem a reação popular



O cenário desenhado para depois de 1o de outubro é semelhante ao dos últimos meses: o aprofundamento da crise e, ao mesmo tempo, dos dilemas tucano-pefelistas. Clóvis Rossi, comentarista da Folha de S. Paulo, se apressou em proclamar que “a eleição acabará ‘sub judice’” (28/9/2006), levando sua pedra ao muro das lamentações oposicionistas. O cardeal pefelista Jorge Bornhausen, sob o argumento de que “o comitê da reeleição de Lula deixou um rastro de lama”, ecoa argumento de que Nixon, nos EUA, foi reeleito mas um ano depois sofreu o impeachment por irregularidades cometidas durante o primeiro mandato! A ameaça de requentar a tentativa de pedir o impedimento do presidente Lula é clara, mas sem muita convicção: “não precisaremos de impeachment: o povo decidirá no voto”, diz o oligarca catarinense (Folha, 28/9/2006).



Roberto Busato, presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil é mais desenvolto, e fala abertamente que a OAB poderá reexaminar um pedido de impeachment, mas faz uma ressalva: “se houver clima para tanto”.



Tanto Busato como Bornhausen refletem o dilema que o empresário Horácio Lafer Piva (ex-presidente da FIESP e presidente da Bracelpa (Associação Brasileira das Empresas de Celulose e Papel), registrou em entrevista para a Folha (25/9/2006). Confessando-se “decepcionado com a população brasileira” e com a falta de mobilização popular contra Lula, ele reconhece que uma improvável “gestão Alckmin” precisaria atrair “uma enorme parcela da sociedade que se distanciou desse projeto social-democrata  pouco claro [do PSDB] e que hoje está abraçada com o presidente Lula”. Para ele, “criou-se uma situação plebiscitária”, uma “guerra entre os bem-informados e os mal-informados, se quiser chamar assim, ou entre a classe mas favorecida e a menos favorecida, e isso esgarça o tecido social e cria dificuldade para o início da próxima gestão”. Dando nomes aos bois (bem-informados = classes mais favorecidas, e mal-informados = classe menos favorecida), o empresário identifica, com outras palavras, o traço mais profundo da crise: a velha luta de classes, que define os campos contrapostos da disputa política em curso, e que é tão temida pela classe dominante.



Em 2005, as lideranças tucano-pefelistas recuaram ao perceber que sua pregação golpista não empolgou o povo. Formalistas, não perceberam a lógica de classe do confronto, diferenciando substancialmente a situação atual e a outra, a do Fora Collor de 1992, e tornando derrisório o sonho da direita de caras-pintadas ocupando as ruas contra Lula. Não foi apenas a corrupção que afasto Collor, mas o programa neoliberal que inaugurou no país. Pior, para a direita: os estudantes e o movimento popular foram às ruas em 2005 pelo Fica Lula! Isso traduz o dilema tucano-pefelista: querem afastar Lula do governo, mas quem fará isso por eles? Seus clamores não ecoam nos quartéis, e menos ainda nos movimentos sociais, mesmo que – como em 1964 – consigam mobilizar algumas mulheres da classe média alta. Nos dias de hoje, essa mobilização, mesmo se conseguirem – e o fiasco do clube Espéria indica suas dificuldades nesse sentido – corre o sério risco de cair no vazio, sem repercussão.



CUT: o voto é o princípio
sagrado da democracia



As dificuldades para a direita são reais, como mostra a pronta resposta da Central Única dos Trabalhadores à fanfarronada de Roberto Busato e seu sonho do impeachment de Lula. Em nota divulgada dia 27, a CUT foi clara: “o princípio sagrado da democracia – a cada cidadão, um voto – não pode ser substituído pelo prejulgamento de alguns. A maioria do povo é livre para escolher aquele que considera o melhor candidato, apenar da contrariedade da oposição e de setores da mídia”. Dizendo que “a realidade não é unidimensional”, a nota assinada por Artur Henrique, presidente nacional da CUT, cobrou a investigação “sobre a suposta participação de integrantes do PSDB no nascimento e crescimento da chamada máfia dos sanguessugas, em torno da qual teve início o acirramento da disputa política nos últimos dias”.



O Brasil superou as limitações e a consciência política e democrática dos brasileiros avançou, desmentindo todos os preconceitos da elite sobre sua alegada “ignorância”, “baixa escolaridade” e “capacidade limitada para votar”. A realidade brasileira deste início do século 21 é radicalmente diferente daquela que existia no país ainda fortemente agrário das décadas de 1940 e 1950, ou em transição para a urbanização, como nas décadas seguintes. A mudança dos brasileiros para as cidades – onde moram hoje 80% de nosso povo, sendo que metade da população está em cidades com mais de 100 mil habitantes – criou uma realidade nova, que corrói o velho coronelismo e limita a influência política dos setores de classe média, entre os quais a pregação da elite tem maior repercussão. Os brasileiros manifestaram essa consciência nas praças públicas desde o final da ditadura militar, nas campanhas pelas diretas-já, depois pelo Lula-lá em 1989, no fora Collor de 1992, e na resistência contra a privataria que marcou os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso. Consciência que aparece também nesta eleição, apesar de todas as diatribes da direita e seus porta-vozes.