Flávio Aguiar comenta os “eflúvios do macartismo” midiático

Às vezes meu amigo Leblon exagera. Às vezes demonstra uma faro excepcional. E agora, além dos aviões de carreira, ele está farejando mais fritura pelo ar. “Veja, Flávio, o que fizeram com o Paulo Betti, e que fazem, sempre que podem, com a Marilena Cha

 


Flávio Aguiar*


 


Meu amigo Saul Leblon, da Moóca, em São Paulo, continua com seus escritos e lembranças. Mandou-me uns aquecimentos de memória muito pertinentes: “Na década de 1940 e 1950, as forças da consciência e as do medo circulavam pelas grandes metrópoles do mundo disputando cada centímetro da opinião pública.


 


Uma guerra mundial, seguida de um confronto entre distintos projetos de sociedade, cobrava seu preço, embaralhando referências e esfarelando convicções. Os acontecimentos borbulhavam, pilhas desordenadas de eventos históricos geravam forte demanda por sentido e uma perigosa oferta de Ordem no ar. Políticos, jornais e noticiosos disputavam a primazia de acomodar os fatos com a força dos argumentos.


 


É difícil não relacionar aquele ambiente com a exasperação que toma conta hoje dos arautos do conservadorismo na grande imprensa nativa, à medida em que o tempo passa e a candidatura de sua preferência não roda na velocidade desejada. Empacada esta até o momento no atoleiro da irrelevância popular, resta-lhes a demonização do adversário, e de quem o apóie. Veja, Flávio, o que fizeram com o Paulo Betti, e que fazem, sempre que podem, com a Marilena Chauí.


 


Mutatis mutandis, nos anos 50, nos EUA, talentos na arte da suspeita e da difamação, até da calúnia, também enchiam as redações. Oradores implacáveis depenavam biografias em cada esquina, como agora por aqui se fez em cada canal de TV, em cada câmara inquisitorial disfarçada de CPI. Naqueles tempos terríveis, o interesse econômico fazia o resto, financiando a moenda de vidas e reputações. Tristes tempos aqueles em que as provas cabiam aos réus e eram implacavelmente rechaçadas porque se tratava de fabricar demônios custe o que custasse. Uma dinâmica de furacões morais sugava tudo à sua passagem, inclusive as fronteiras republicanas entre a esfera pessoal e a vida pública.


 


Devassas proporcionavam ao medo seu quilo diário de reafirmação depurativa. Um socialista trabalhando na máquina federal era necessariamente suspeito de contaminar o Estado com suas idéias –ainda que elas permanecessem dentro dos seus neurônios no horário de trabalho.


 


A endogamia da calúnia com a intolerância ganhou uma referência que se transformaria em símbolo da perseguição conservadora em todos os tempos e latitudes: o senador Joseph McCarthy, uma espécie de Carlos Lacerda em escala mundial, foi o mestre e precursor do espetáculo midiático, revivido atualmente, que consiste em puxar intermináveis fios da suspeita e gerar ilações –por exemplo PT+PCC– que permitam esquartejar o “inimigo” em público, e sem direito à defesa.


 


McCarthy engatou sua roca ferina no emaranhado do serviço público norte-americano e de lá arrastava para o garrote-vil das comissões de investigação todos os nomes suspeitos de servir à “causa comunista internacional”. A engrenagem operosa e tentacular estendeu seu braço também aos meios artísticos, para espetar na lista negra da perseguição e do ostracismo gente famosa como Dashiell Hammet, Waldo Salt, Lilian Hellman, Lena Horne , Paul Robeson , Arthur Miller, Aaron Copland, Leronard Bernstein, Charlie Chaplin, Sam Peckinpah, Bertolt Brecht, entre outros .


 


McCarthy tinha um arsenal de golpes baixos para condenar sem provas. Um deles era adicionar os nomes de quem o criticasse à lista dos suspeitos, como simpatizantes da causa comunista, desqualificando-os por antecipação. O senador só parou sua cruzada higienista quando encontrou pela frente alguém disposto a uma boa investigação jornalística, provando que era um manipulador mentiroso, independente de suas convicções.


 


O filme Good Night and Good Luck, exibido recentemente no Brasil, mostra como um jornalista liberal –na verdadeira acepção da palavra—Edward Murrow, âncora de um noticioso da CBS, enfrentou o macartismo com três ingredientes de uso cada vez mais escassos na mídia brasileira hoje: rigor, investigação e coragem.


 


Porque Flávio, a chave dessa gritaria pela mídia é a intimidação, como nos tempos de McCarthy. Por menos que pareçam, artistas, professores, intelectuais, sempre foram sensíveis à mídia, alguns até com um certo exagero. Mas é que a liberdade de pensamento é a sua matéria. Ao escolher os alvos preferenciais e dizima-los com carradas de adjetivos raivosos, ela (a gritaria) espera amansar o resto. Como ridícula feitora do pensamento, essa gritaria espera que o conjunto do “rebanho” que vê escapar do seu aprisco a ele retorne, de cabeça baixa, em ato de contrição pela rebeldia.


 


Mas tudo isso só funciona de fato com a avacalhação da candidatura de preferência popular. Daqui até a eleição, Flávio, vão alevantar tudo que for possível, tentando grudar a digital do candidato presidente no que aparecer: dificuldades na montadora que despede trabalhadores, baixo crescimento do PIB, fotos de Collor e até de FHC na mesma posição, palavras como máfia, corrupção, populista, eleitoreiro, palavrões, crianças no palanque, cadáveres que surjam ou sejam exumados.


 


Ações como as da Polícia Federal, prendendo em um mês o que a de S. Paulo não prendeu em dez anos (por falta de inteligência) serão descritas como golpes publicitários, e assim por diante. Esses últimos quase 30 dias de campanha serão dos piores que vamos atravessar. Se a avacalhação não der certo agora, ela servirá como patrimônio para o assalto conservador que virá depois das eleições, sob a forma de uma mais acirrada tentativa de inviabilizar um governo que, é verdade, sequer fez as reformas de base reclamadas pela nossa geração antes de 64. Ele só inverteu ou espichou os vetores de algumas políticas públicas, dirigindo-as aos necessitados, mas para esses McCarthies dos novos tempos isso já é insuportável.


 


Seja como for, o material escatológico que já veio, está vindo e virá à tona merece a atenção dos nossos cineastas, dramaturgos, poetas, cronistas, romancistas e contistas. Contém sementes de um enredo semi-pronto. Trechos inteiros se oferecem ao aproveitamento linear de quem assumir a importante tarefa de perenizar na arte e na cultura o ambiente áspero e amargo destes tempos sombrios, que antecedem as eleições presidenciais de 2006. Boa noite e boa sorte, Flávio, nas trevas que nos aguardam.”


 


O Leblon às vezes exagera. Mas em outras demonstra um faro excepcional.


 



*Flávio Aguiar é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP) e editor da TV Carta Maior. Artigo publicado originalmente no site da Agência Carta Maior: www.cartamaior.com.br