Tribunal não pode revelar laços de Hussein com EUA e França
O ex-presidente do Iraque, Saddam Hussein, deposto com a invasão e posterior ocupação do Iraque pelos EUA em março de 2003, passou nesta quarta-feira (23/8) pelo terceiro dia de seu novo julgamento, por causa da chamada ''Operação Anfal'' (despojos de gue
Publicado 23/08/2006 12:02
Líderes das áreas ''autônomas'' curdas do norte do Iraque, instalados pelo ocupante americano, exigem que Bagdá pague uma indenização pela morte de curdos durante a Anfal. A exigência do governo regional do Curdistão foi revelada apenas dois dias depois do início do julgamento do ex-presidente iraquiano por causa da operação.
Os promotores tentam provar que o governo de Hussein foi responsável pela morte de 50.000 a 180.000 pessoas durante a campanha militar deflagrada entre 1987 e 1988 na fronteira com o Irã. Segundo a acusação, gases venenosos teriam sido usados na ofensiva. A defesa do ex-presidente argumenta que que a operação militar tinha como objetivo afastar da região milicianos curdos aliados ao Exército iraniano na ocasião.
Julgamento desacreditado
Há dois anos, em um café do centro antigo de Bagdá, os clientes foram questionados pelo diário francês Le Monde sobre o processo contra o ex-presidente Saddam Hussein. Todos revelaram na época descrença com o julgamento e disseram que os Estados Unidos iriam controlar inteiramente o tribunal, diante do qual foram forçados a comparecer o ex-presidente e sete membros de seu governo.
Diziam também que nenhum estrangeiro seria ali questionado, fossem quais fossem os crimes hediondos que pudessem ter cometido no Iraque. “Se esse processo um dia acontecer mesmo, e eu duvido”, dizia um professoar ao diário francês, “nunca abordará a questão das relações de Hussein com os países estrangeiros”. Um engenheiro acrescentou: “Isso traria o risco de revelar coisas demais que não são do interesse do Ocidente”.
Apoio americano e francês a Hussein
O perito judiciário americano Cherif Bassiuni explicou na época que: ''tudo foi feito para instalar um tribunal em que os juízes não serão independentes, mas ao contrário, estritamente controlados. Falando de controle, quero dizer que os organizadores desse tribunal têm de assegurar-se de que os Estados Unidos e as outras potências ocidentais não serão questionadas. Os próprios estatutos do tribunal farão com que os Estados Unidos e os outros países sejam completamente afastados das acusações. O que fará desse processo um processo incompleto e injusto; uma vingança do vencedor''.
Os organizadores americanos e iraquianos do processo decidiram que o tribunal especial não pode acusar nenhum estrangeiro de cumplicidade – o que quer dizer nenhum americano, inglês ou francês.
Nos últimos 40 anos cinco presidentes americanos, três presidentes franceses, vários primeiros ministros britânicos e inúmeros empresários ocidentais foram cúmplices, e por vezes co-autores, dos denominados crimes supostamente cometidos pelo governo de Saddam Hussein.
Luta contra os comunistas
Foi sob a presidência de John F. Kennedy que Washington começou a apoiar matanças no Iraque. Em 1963, preocupados por ver o presidente Abdel Karim Qassem se aproximar de Moscou e ameaçar nacionalizar o petróleo, os Estados Unidos decidiram agir.
Em 8 de fevereiro de 1963, apóiam o golpe de estado de um partido político na época muito anticomunista, o Baath. Conselheiro político da embaixada dos Estados Unidos em Bagdá logo depois desse golpe de estado, James Akins confirma: ''Fornecemos dinheiro aos baathistas, muito dinheiro, e equipamento. Isso não se dizia abertamente, mas muitos dentre nós o sabíamos''.
Depois de fuzilar o presidente Qassem, os baathistas mataram e torturaram milhares de comunistas e simpatizantes da esquerda: médicos, magistrados, operários. ''Nós recebemos uma só ordem: exterminar os comunistas!'', confessa um dos autores desse massacre, hoje diretor de uma escola primária em Bagdá, Abdallah Hatef. ''O jovem Saddam Hussein estava muito motivado. Torturava os operários, o que consistia em encher os homens com água, em quebrar-lhes os ossos ou em dar-lhes choques elétricos''.
Washington sempre negou, mas vários dirigentes do golpe de Estado revelaram que a CIA desempenhou um papel ativo na matança, notadamente fornecendo listas de comunistas a serem presos. Em 2003, uma ex-autoridade da diplomacia americana, entrevistada por uma grande agência de notícias, antes de responder exigiu o anonimato: ''Estávamos francamente felizes por nos livrarmos dos comunistas! Vocês acham que eles mereciam uma justiça mais equitativa? Estão brincando. O negócio era sério mesmo!''
Até então inédito, o relatório de uma reunião ocorrida em Bagdá em 9 de junho de 1962 entre os americanos e os baathistas confirma a ''vontade comum de erradicar o comunismo na região''. O inimigo visado não se limitava aos comunistas, mas incluía os curdos resistentes ao poder baathista no norte do país.
Em Bagdá, Subhi Abdelhamid, que na época comandava as operações do exército iraquiano contra os curdos, confirmou que havia negociado pessoalmente com o adido americano a entrega de 5 mil bombas a fim de esmagar a resistência. “Depois, os americanos nos ofereceram, sem exigir pagamento, mil bombas de napalm para bombardear as aldeias curdas''. Segundo os curdos que viveram esses bombardeios, o napalm queimou o gado e aldeias inteiras. Mas na época eles pensavam que aquele napalm tinha sido fornecido pelos soviéticos.
A guerra contra o Irã
Hussein será acusado também de de ter empreendido, em setembro de 1980, uma guerra contra o Irã, que custou a vida de 1 milhão de homens e mulheres. Entretanto, várias testemunhas afirmam que Washington o encorajou a iniciar esse conflito. O Ocidente tinha tudo a ganhar em vê-lo atacar a muito ameaçadora revolução islâmica do aiatolá Khomeiní.
Um documento altamente secreto do governo americano, datado de 1984, revela: ''O presidente Carter deu a Saddam Hussein o sinal verde para começar a guerra contra o Irã''.
Com esse sinal verde, os Estados Unidos participaram também do plano de batalha contra o Irã — É o que afirma o presidente iraniano da época, Abolhassan Bani-Sadr. Segundo ele, seus serviços secretos compraram uma cópia desse plano, redigido, segundo suas fontes, em um hotel parisiense por iraquianos e americanos. ''O que me permite afirmar que era autêntico é que a guerra iraquiana foi conduzida exatamente de acordo com esse plano. Foi por ter esse plano que nós pudemos enfrentar os ataques iraquianos''.
Oficialmente, Washington estava neutro no conflito Irã-Iraque. Uma comissão de investigação americana, todavia, revelou que a Casa Branca e a CIA secretamente passaram a Hussein todo tipo de armas, entre as quais bombas de fragmentação. Suas informações por satélite permitiram melhor visar as tropas iranianas, enquanto que Washington sabia da utilização de armas químicas pelas tropas iraquianas.
Segundo Rick Francona, oficial de informação militar americana, que em 1988 levava a Bagdá a lista de alvos iranianos a serem bombardeados, foram essas informações que deram ao Iraque a vitória final sobre o Irã.
Massacre aos curdos
Outro dos crimes pelo qual Hussein responde agora diante do tribunal especial é a morte por gás, em 1988, de 5 mil civis da aldeia curda de Halabja. Bagdá os acusou de ter colaborado com os iranianos. Na época, os Estados Unidos e a França fizeram tudo para impedir que Hussein fosse condenado por esse crime.
Não apenas o presidente Ronald Reagan impôs seu veto a uma lei destinada a bloquear o comércio americano com o Iraque, mas Washington enviou um telex a suas diversas embaixadas no mundo, pedindo-lhes para afirmar que os curdos de Halabja haviam sido mortos com gás pelos… iranianos.
A França também ''esqueceu'' de condenar Hussein por este crime. No dia seguinte ao drama, o governo de Michel Rocard publicava um comunicado denunciando os ataques químicos ''venham de onde vierem'', mas sem citar o presidente iraquiano. Ministro das relações exteriores na época, Roland Dumas explica por quê: ''É verdade que o Ocidente fechava um pouquinho os olhos, porque o Iraque era um país que nós julgávamos necessário para o equilíbrio da região''.
Já Jean-Pierre Chevènement, ministro da defesa na época, declarou: ''Se quisermos julgar o caso de Halabja no seu conjunto, é preciso remeter-se à importância decisiva daquela região no fornecimento mundial de petróleo: quem tem essa região tem o equilíbrio financeiro do planeta. Então, nunca se tem a escolha entre o bem e o mal: tem-se a escolha entre o que é horrível e o que é horrendo''. Além de suas necessidades de petróleo, a França era também o primeiro fornecedor militar do Iraque.
Em Paris, o homem que comandava a Direção Geral da Segurança Externa (DGSE) em 1981, Pierre Marion, preocupava-se com o apoio militar da França de François Mitterrand a Saddam Hussein. Ele afirma hoje que esse apoio era alimentado pelos comerciantes de armas, que tinham todo interesse em manter a guerra Irã-Iraque. ''Dassault'', diz Marion, ''foi o comerciante de armas que mais lucrou com esta guerra e que mais a impulsionou.
Ele tinha meios de pressão extremamente enérgicos e potentes sobre todos os dirigentes franceses''. Em 1992, uma pequena associação européia, Juristas contra a Razão do Estado, acionou na justiça os vendedores de armas franceses Dassault, Thomson e Aérospatiale. Os tribunais parisienses chegaram então à conclusão que vendendo armas a um país que as utilizava para bombardear civis, essas companhias francesas se expunham ao risco de um dia, ter de prestar contas à justiça.