Comissão investiga violação do direito à moradia em SP
Publicado 06/06/2006 17:00
Despejos forçados, expulsão da população de baixa renda das regiões centrais, condições de moradia inadequadas, falta de programas habitacionais consistentes e de tarifas sociais. Os problemas de habitação da cidade de São Paulo e de outros municípios paulistas já são bastante conhecidos, mas foram constatados de perto, na semana passada, pela missão da Relatoria Nacional do Direito à Moradia da Plataforma Dhesc (Direitos Humanos, Econômicos, Sociais e Culturais), em parceria com o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH). Após visitar, em São Paulo e São José dos Campos, ocupações ameaçadas de reintegração de posse, mutirões abandonados, projetos de habitação paralisados, ouvir diversas denúncias por parte dos movimentos de moradia e conhecer experiências exitosas nessa área, a relatoria propôs a criação de uma comissão para intervir e acompanhar os casos notificados de violação do direito humano à moradia.
A relatora nacional Lúcia Maria Moraes recomendou, durante audiência pública na Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, na sexta-feira (2), que o grupo seja integrado por representantes do Ministério Público Estadual e Federal, da Defensoria Pública, da prefeitura, do governo estadual e federal e por lideranças dos movimentos populares. “O maior problema de moradia encontrado nessas duas cidades é a falta de diálogo e interlocução das administrações públicas municipais com os movimentos que já travam lutas em relação à moradia há muito tempo, com as pessoas que estão morando naquelas áreas. Isso ocorre ao mesmo tempo em que o problema da habitação é gravíssimo tanto em São Paulo quanto em São José dos Campos. Esperamos que essa comissão possa ajudar nesse sentido”, afirma Lúcia.
Um exemplo do tratamento conferido pelo poder público à questão da habitação em São Paulo é o da ocupação nos edifícios da avenida Prestes Maia, na região central da capital, onde vivem desde novembro de 2002 cerca de 1.600 pessoas, das quais aproximadamente 700 são crianças e adolescentes. Na gestão da ex-prefeita Marta Suplicy (PT), estavam avançadas as negociações a respeito da desapropriação dos edifícios, já que os proprietários têm uma dívida relativa ao IPTU de quase 5 milhões de reais com a Prefeitura. Desde o ano passado, no entanto, a maior ocupação vertical do Brasil vem sendo ameaçada de despejo e já teve sua reintegração de posse determinada e adiada algumas vezes. Ela se tornou um símbolo da luta pela moradia no Estado de São Paulo, por ser a única da área central que ainda resiste à onda de remoções iniciada na administração do prefeito José Serra (PSDB).
No dia 27 de maio, alegando questões de segurança, a Eletropaulo cortou a energia elétrica da Prestes Maia sem nenhum aviso prévio e deixou no escuro as 468 famílias de baixa renda que vivem ali. “Vivemos em situação precária, vivemos o pesadelo da reintegração de posse, das ameaças constantes. Não conseguimos nem dormir. Agora estamos subindo e descendo 22 andares de escada, à luz de velas e sem água, que depende da bomba. Desligaram a luz porque as famílias corriam risco e como elas estão agora?”, questionou, na audiência pública, Ivanete de Araújo, coordenadora do Movimento de Sem-Teto do Centro (MSTC), lembrando do perigo iminente de incêndio. Segundo ela, o secretário municipal de habitação, Orlando Almeida, se recusa a receber os movimentos de moradia para discutir essas questões.
Para piorar ainda mais a situação dos sem-teto, foi aprovado pelo Conselho Municipal de Habitação que as famílias que ocupam qualquer imóvel, terra pública ou privada na cidade de São Paulo não possam mais ser atendidas nos programas de moradia. Essa decisão é semelhante a uma lei implementada em São José dos Campos e em outras cidades visitadas pela relatora, como Teresina, no Piauí. “Negar as políticas públicas àqueles que estão em ocupações é excluir do serviço público de relevância cidadãos já excluídos de seus direitos”, diz a procuradora geral de Justiça do Estado de Goiás, Ivana Farina, integrante do CDDPH.
Em São José dos Campos, os sete mil sem-teto que desde fevereiro de 2004 ocupam um terreno de quase 1,4 milhões de metros quadrados, conhecido como fazenda Pinheirinho, também sofrem com ameaças de reintegração de posse e com a exclusão e discriminação por parte da administração pública municipal. Foi aprovada, em 2004, uma lei municipal que retirou os benefícios sociais – como leite e cestas básicas – das famílias de baixa renda que estão no acampamento. De autoria do então presidente da Câmara dos Vereadores, Walter Hayashi (PSB), ficou conhecida como “Lei da Fome”. Considerada inconstitucional, foi derrubada no ano passado pelo o procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo, Rodrigo Rebelo Pinho. Em 2005, o prefeito Eduardo Cury (PSDB), também conseguiu na Justiça uma liminar para cortar o fornecimento de água e energia elétrica para a população que vive no Pinheirinho, que só foi derrubada na última hora.
“O prefeito de São José dos Campos afirmou que não vai aceitar os recursos do governo federal para construção de casas no Pinheirinho e que haverá desocupação da área ainda neste mês”, anuncia Lúcia. Em sua missão à cidade do interior paulista, ela não foi recebida pelo prefeito, que menosprezou a atuação da relatora. Também foram visitadas ocupações que já sofreram despejo e foram removidas para áreas distantes do centro e atualmente vivem em situação bastante precária.
Na avaliação da secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades, a urbanista Raquel Rolnik, existem dois elementos em comum entre todos os relatos e denúncias sobre os problemas habitacionais das cidades de São Paulo e São José dos Campos. Um deles é a resistência à idéia de que a população de baixa renda tem o direito a morar nas áreas centrais, consolidadas e boas dessas cidades. “Há a reiteração de um padrão de política habitacional que considera que o lugar de pobre é na periferia e não admite a hipótese de ter uma cidade mais coesa. Não podemos continuar a ter cidades partidas, segregadas, com guetos de pobres na periferia e áreas centrais desocupadas, sub-utilizadas. Mas existem obstáculos legais, administrativos, ideológicos e culturais para reverter isso”, afirma a secretária.
Outro ponto em comum, segundo ela, é o fato de que as gestões estaduais e municipais não admitem que a demanda habitacional possa ser negociada com o movimento popular organizado. “Para eles, tem que ser fila ou sorteio, métodos considerados mais transparentes e democráticos, mas que ignoram a história de organização e luta dos movimentos sociais e o papel que isso tem para o país. Negociar com eles significaria admitir que o movimento social é formulador e interlocutor da política pública e deve ser atendido pelo poder público”, completa a urbanista, que confirmou a participação do Ministério das Cidades na comissão que está sendo formada para enfrentar esses problemas.
Fonte: Agência Carta Maior