Artigo “Irã, hipocrisia e interesses” condena EUA
Texto publicado no Le Monde Diplomatique questiona: Por que a Casa Branca (e a mídia) querem transformar o Irã na “bola da vez”? Que medidas poderiam abrir caminho para um desarmamento nuclear completo?
Publicado 28/05/2006 22:16
Menos de três anos se passaram desde que os conglomerados de comunicação com alcance mundial endossaram as mentiras sobre “armas de destruição em massa” difundidas pela Casa Branca a respeito do Iraque. Esta insistência em repetir sem crítica os argumentos do poder é um sinal do quanto falta para assegurar o direito à informação, e de como a mídia pode ser convertida em instrumento de anestesia social e ameaça à paz. Mas vale a pena ir além. Que interesses estariam movendo a nova campanha de Washington? Ou, igualmente importante: como satisfazer o desejo legítimo das sociedades por proteção contra as armas nucleares?
Alguns textos publicados por Le Monde Diplomatique nos últimos anos ajudam a aprofundar a informação e o debate sobre estes temas cruciais. Um deles é “Quando os Estados Unidos provocam um confronto”, redigido em janeiro de 2005 por Walid Charara, jornalista especializado em assuntos árabes. O autor vê o Irã como grande obstáculo a um dos objetivos estratégicos centrais dos EUA: assegurar o controle do Oriente Médio e suas riquezas naturais — se possível, promovendo a chamada “remodelagem” da região.
Por sua população numerosa (70 milhões), sua localização estratégica e seu poder econômico não-desprezível, explica Charara, o Irã é o que se chama de “potência regional média”. Isso o transforma em possível parceiro do que o próprio Pentágono qualifica como futuros “concorrentes de mesmo nível” — ou seja, adversários (China, União Européia, Rússia e Índia) com potencial para desafiar, a médio prazo, o poder unilateral dos EUA. Para compreender melhor a os objetivos geopolíticos que Washington adotou sob Bush, vale a pena ler também “A nova doutrina militar norte-americana”, de Paul-Marie de la Gorce.
O oligopólio das potências atômicas – Um amplo exame do dispositivo de direito internacional agora usado contra o Irã (o Tratado de Não-Proliferação Nuclear-TNP) foi o tema central da edição de novembro de 2005 do Le Monde Diplomatique. Em Sessenta anos de armas nucleares, Georges Le Guelte aponta a desigualdade flagrante como causa essencial da debilidade do TNP. Firmado em 1968, a partir de iniciativa dos cinco países que então possuíam armas atômicas [1], o acordo estabelece um oligopólio de potências nucleares. Autoriza os então detentores de artefatos atômicos a mantê-las; e procura obrigar todos os outros países a não desenvolvê-las…
Na mesma edição, Cyrus Safdari (O direito à tecnologia) descreve em detalhes as negociações mantidas entre o Irã e a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) antes do início da crise atual. Sua impressão é de que, a cada concessão do Irã, a AIEA apresentava novas exigências. Além disso, as acusações atuais a Teerã teriam um sentido quase kafkiano: o país estaria sendo intimado a demonstrar que não desenvolve tecnologia que ’poderia’ ser usada, no futuro, para produzir armas atômicas… A mesma AIEA, contudo, teria adotado atitude inteiramente diversa em relação ao Egito e Coréia do Sul – dois grandes aliados dos EUA. Suas experiências nucleares secretas, muito semelhantes às desenvolvidas pelo Irã, foram descobertas pela agência, que, no entanto, contentou-se com uma “pequena repreensão”.
É admissível que um assunto gravidade tão grande quanto a difusão de armas nucleares seja tratado em meio a hipocrisia e interesses menores? Há quem julgue que não. Desde 1980, está em atividade uma ONG internacional denominada Médicos do Mundo para a Prevenção das Guerras Nucleares (IPPNW). Fundada por dois renomados cardiologistas (Bernard Lown, dos EUA, e Evgueni Chazov, da então URSS) e agraciada com o Prêmio Nobel da Paz em 1985, ela defende a abolição incondicional de todas as armas atômicas. Reúne 200 mil membros, espalhados por mais de 60 países. Não se limita a lançar propostas de longo prazo e demorada execução. Em seu site, é possivel encontrar, por exemplo, uma alternativa muito concreta para a crise iraniana. Assinado pela IPPNW e por diversas organizações e personalidades internacionais, um manifesto pede que o secretário-geral das Nações Unidas, Koffi Annan, intervenha no debate. Sugere-se até detalhes: constituir, tão logo quanto possível, uma “comissão de mediação da ONU, composta de personalidades de internacionalmente conhecidas” e encarregada de “encontrar saídas pacíficas num prazo de seis meses”.
Última pergunta: o público que assiste aos noticiários da TV não teria o direito de conhecer fatos como este?
Fonte: Le Monde Diplomatique